sexualidade como forma de estado

Jamie Heckert, “Sexualidade como Forma de Estado”, páginas 4 e 5.

“Se o anarquismo não é uma ideologia fixa, mas uma tendência em contínua evolução na história humana “para desmantelar […] formas de autoridade e opressão” (Chomsky, 1970), então parece evidente para mim que o anarquismo pode ser percebido nas críticas queer sobre qualquer suposta fronteira existente entre heterossexual e homossexual, e a violência que seu policiamento envolve. Portanto, nesse sentido, uma abordagem anarquista da orientação sexual não é particularmente original nem necessária. A teoria queer e os movimentos feministas e outros movimentos dos quais e com os quais ela se desenvolve já estão fazendo esse trabalho. Dito isso, sugiro que uma crítica explicitamente anarquista da orientação sexual pode ser valiosa para recontextualizar histórias, compreender experiências contemporâneas e desenvolver novas formas de relações e movimentos sociais.

[…]

Essa abordagem anarquista da organização social também pode ser entendida no sentido de reconhecer as estruturas como internas às relações humanas, e não como fontes de poder fora do âmbito social. Assim, o pós-estruturalismo não nega, como alguns sugeriram, a realidade da dominação e da opressão, nem a aparente estabilidade das estruturas do capitalismo e do governo. Pelo contrário, teóricos como Foucault e Deleuze argumentam que as estruturas não são fixas, nem são forças históricas simplesmente conservadas, mas que essas estruturas aparentes são continuamente produzidas por meio de relações sociais. Em teoria, as pessoas poderiam produzir formas muito diferentes de organização social mudando a natureza de suas relações sociais. Esse argumento é coerente com elementos do chamado anarquismo clássico.

Na prática, essa é uma tarefa difícil, mas não impossível, e se beneficia de uma abordagem tática, reconhecendo a aplicação do poder em contextos locais e específicos. Se, como argumentam Guattari, Foucault e Deleuze, o poder não tem centro, então a abordagem vanguardista promovida pelo leninismo-marxismo e por certas formulações do feminismo lésbico não pode mais ser justificada por reivindicações de posições de sujeito em relação aos centros de poder. Da mesma forma, a crítica de Ebert (1996) a Foucault (e Butler) que os considera anarcocapitalistas que não reconhecem a exploração do capitalismo interpreta erroneamente, ao que me parece, o anarquismo de Foucault. Não é simplesmente ao estado, como um conjunto de aparatos jurídicos e disciplinares, que Foucault se opõe, mas às relações de poder semelhantes às do estado (por exemplo, disciplinares, penais, psiquiátricas) cujos efeitos cumulativos são o estado; simultaneamente, o aparato estatal depende dessas relações descentralizadas de poder e obediência para existir.”

minha neurodivergência também é queer e anarquista

por Luz Costa

Eu seria muito tolo de não pensar na minha neurodivergência em oposição ao Estado psicofóbico. Se não há espaço para que eu possa viver plenamente meu corpo atípico, há menos ainda para meu corpo transqueer – em vista que os dois ocupam o mesmo espaço: eu. E seria ainda mais tolo em não ver crítica num espaço que recorre constantemente aos binarismos sexistas para explicar o meu diagnóstico: os homens geralmente têm ‘y’ comportamento e as mulheres ‘x’. Mas qual espaço meu corpo sem gênero ocupa no meio homem-mulher?

Nessa desculpa constante de que “ser criado como uma mulher” faz ter tais comportamentos sociais, me encontro à mercê da leitura social de outros para explicar como sou lido e interpretado, como se a minha vivência se resumisse apenas a associações falocêntricas do meu corpo trans-bicha.

Acontece que, numa sociedade psicofóbica e machista, há uma imposição social entre as mulheres autistas para que o masking seja “melhor executado”, reforçado pelo credo que as obriga a desempenhar o papel de amorosa, cuidadosa, ouvinte e querida o tempo todo: uma mulher rude é louca, um homem rude é apenas um homem. E parte da comunidade contesta e critica o constante sexismo e racismo presente nos debates. Há uma relevância em contestar como as violências ideológicas são barreiras na conquista do diagnóstico precoce. Entretanto, essa separação entre homens e mulheres têm outro caráter profundo, representando uma forma de esconder que autistas possam ser pessoas dissidentes. Esse mesmo discurso, tão bem declarado repetidamente pelo capitalismo, tem objetivo de minimizar e excluir minorias sexuais e de gênero e corrobora para um imaginário ilusório acima de um autismo não-sexual, antecipando que autistas e demais neurodivergências não experimentam sexualidade e gênero. O reflexo dessa discriminação capitalista contra qualquer corpo com deficiência é o apoderamento da criação de uma imagem anti-natural sobre nós. Para esse sistema, somos apenas pequenas aberrações não merecedoras de procriar nossa própria espécie ou, sequer, experimentar do gozo e dos prazeres corporais. Nós não podemos ter escolhas sobre nós mesmos, somos criaturas incapazes de decidir e viver nossa individualidade. Consequentemente, novamente me sinto forçado em me tornar um ser à par de binarismos sociais, desempenhando perfeitamente o papel heterocisnormativo -sem reclamar – e imitando, como um boneco, um ser incapaz de entender assuntos complexos, que só “tipicamente neurodesenvolvidos” possam entender por mim.

(E, novamente, o controle de corpos no capitalismo, também, me capta).

Estou farto das convenções.

Preciso que vocês lembrem que meu corpo trans existe e ele vive o TEA tanto quanto qualquer outro aspecto. E por ser trans, minha experiência TEA está além das margens que ‘típicos’ colocam em mim. Quero que lembrem que meu corpo não é só mais uma máquina sistemática, num campo cisgênero forçado porque acreditam que sou incapaz de assumir mais um elemento da minha vivência.

A minha divergência também é anarquista, porque me recuso a cooperar com mais uma hiperfobia inventada e pensada justamente para me botar numa caixa repleta de violência. Eu existo para além do seu Estado. Eu existo para além das suas imposições e instituições.

Anarcotrans

por Luz Costa

1 de junho de 2024 

Parada LGBTQIA+ 

Olhava pela janela do ônibus enquanto ia em direção à avenida mais agitada da cidade – a av Paulista -, após esperar o ônibus por uma hora. O sol esquentava minha pele, e eu suava em contato com os moradores do meu bairro, que aos poucos enchiam o ônibus. Mas nada disso importava: eu estava orgulhoso! Era meu dia! Logo, entro no metrô e um show de imagens explodia à minha vista: eu via, animadamente, várias pessoas coloridas, pintadas e carregando alguma bandeira em si. A excitação era tanta, eu mal esperava pra estar, pela primeira vez, na avenida com tanta gente como eu, tão pertinho de mim! Enquanto chegava mais próximo da estação Trianon-Masp, mais nervoso eu ficava. 

Chego na avenida Paulista e vejo um carro de som logo à frente, a música explodia e as pessoas dançavam, apertadas. Tudo era tão maravilhoso e lindo. Eu estava tão feliz! Após alguns minutos acompanhando o carro de som e me apertando junto às outras pessoas, começo a perceber vários logos de marcas diferentes. Parecia que elas me encaravam como quem encara um animal no zoológico. Aquilo me incomoda um pouco, mas não sei explicar o porquê. Continuo andando e pulando animado, junto com a música. Alguns minutos se passam, e um carro de uma empresa que eu trabalhava passa, me oferecendo uma bebida. 

Meu coração pesa. Minha garganta seca. Sinto uma vontade enorme de chorar.

Ali, na minha frente a empresa que se recusou a usar meu nome social quando transicionei. A mesma empresa estava ali, na avenida mais comercial da cidade, me oferecendo um produto, decorando seu carro com uma bandeira. Estava ali, financiando a parada. A minha parada. Engulo em seco e percebo o que estava me incomodando: todos aqueles nomes e outras pessoas que foram violentadas pelos mesmo. E eu estava ali, quase que como uma ironia, na avenida mais comercial de São Paulo, sendo mais um produto dela. Eu estava ali, na avenida mais cara de São Paulo, há duas horas, três baldeações e um ônibus de distância do meu bairro no extremo sul.

De repente, toda aquela alegria de estar com todas aquelas pessoas passou e eu só conseguia me sentir triste. Por que eu estou triste? Eu deveria estar feliz! Todas essas pessoas estão felizes! Eu deveria estar também. Mas eu continuava a sentir meu coração pesado, o ar abafado e uma falta de ar que tomou meu corpo em tremores. De repente, toda aquela gente à minha volta me causou um pânico, como se meu corpo gritasse por ajuda. Eu começo a correr no sentido contrário do fluxo de pessoas em direção à estação mais próxima. Entro na estação e vejo que está cercada de policiais. Eu nunca havia visto uma estação tão cheia de policiais. Relembro, violentamente das mortes que ocorreram ao longo dos anos. Penso em Daniela, Dandara, Carol, Popó. Penso em Marsha e Sylvia e de todas que foram mortas antes e depois. 

Os mesmos que querem nos matar, estão aqui armados, protegendo as catracas onde a população mais assassinada passa, animada, carregando suas bandeiras. 

O que eu to fazendo aqui? Esse lugar não é pra mim! Enquanto desço às pressas as escadas em direção à plataforma, sinto um embrulho no estômago. Queria vomitar toda raiva que vai crescendo dentro de mim. Sinto uma mistura de repulsa e tristeza tomando meu corpo, escapando pelos olhos.

Mas todo mundo tá tão feliz! Eles estão tão felizes! Eu deveria estar também! 

Eu não consigo me sentir feliz! 

sobre boycetas, travestis e a sombra do oprimido

como costuma ocorrer quando pautas relativas às transmasculinidades ganham visibilidade, recentemente nos deparamos com a polêmica sobre o termo boyceta. seria este um termo adequado, equivocado, genitalista, contranormativo ou normativo? o que estariam propondo as pessoas que constituem suas identidades a partir deste termo e que dele o utilizam para se autodeterminar?

não podemos — e não nos interessamos por — generalizar experiências de autoidentificação, reduzindo sua multiplicidade a apenas uma motivação. as experiências transmasculinas que fazem sentido no espectro da identidade “boyceta” são plurais, e, embora compartilhemos vivências e demandas, não há apenas uma maneira de ser boyceta, tampouco apenas um único significado.

todavia, temos percebido certas posturas reativas ao trazemos nossas pautas à tona, ou simplesmente ao apontarmos para nossa existência, seja enquanto boycetas, seja enquanto transmasculinos de maneira geral. as mesmas posturas puderam ser observadas quando rodolpho correa, ator e pesquisador transmasculino, divulgou pelo mutha (museu transgênero de história e arte), junto dos pesquisadores jonas maria e ian habib, sua pesquisa sobre o uso do termo travesti com relação a pessoas transmasculinas. o termo travesti, como mostram os pesquisadores, foi historicamente utilizado para designar, no contexto brasileiro, pessoas trans, seja dentro das transfeminilidades, das transmasculinidades, das transgeneridades não-binárias etc. como consta no relatório mutha (2024): “inúmeras pessoas corpo e gênero variantes em mídias como jornais e revistas, principalmente a partir do século xx, eram referenciadas e apresentadas como travestis, que nem sempre podiam ser compreendidas dentro do escopo que hoje chamamos por transfeminilidades”.

o vídeo que expôs a pesquisa apresentou uma série de reportagens, evidenciando a generalidade histórica do termo travesti. o que ocorreu em seguida, todavia, foi uma publicação da antra em que escreveu que “homens trans, pessoas transmasculinas e não binárias devem produzir suas próprias narrativas e remontar as peças de seu percurso por emancipação. contudo, avaliamos que não é útil propor a dissolução de nossas diferenças e especificidades históricas”.

gostaríamos de saber como exatamente estudos de pessoas transmasculinas sobre o termo travesti estariam promovendo a ‘dissolução de nossas diferenças e especificidades históricas’. o que se ‘dissolveria’ com a compreensão da atribuição das travestilidades a pessoas transmasculinas em determinado contexto histórico? como pessoas transmasculinas, ao serem historicamente apontadas enquanto travestis, estariam ‘dissolvendo’ as travestilidades no contexto atual?

percebe-se uma enorme dificuldade em se identificar as transmasculinidades na história, principalmente pela análise das mídias, o que resulta em uma também gigantesca dificuldade em mapearmos as violências que as atravessam. a subnotificação de casos de violência contra pessoas transmasculinas é um impedimento para que nos movimentemos em prol de políticas públicas que nos contemplem e nos protejam. ao reconhecermos que, historicamente, as travestilidades também disseram respeito às transmasculinidades em certos veículos midiáticos, podemos mapear as violências que atravessaram as transmasculinidades por meio deste outro termo. no entanto, nossas tentativas em resgatar nossa história são vistas como ‘roubos’ identitários.

ao trazermos a polêmica do termo boyceta, acreditamos encontrar pontos em comum com a situação supracitada. o que percebe é a constância das tentativas de invisibilizar e deslegitimar nossas reivindicações e nossas histórias, desapropriando de nós a capacidade de autodeterminação. infelizmente, essas posturas são frequentes em inúmeros movimentos sociais por emancipação. como paulo freire bem o disse, o oprimido deve ter cuidado para não buscar refletir a sombra do opressor, realizando contra outros o que o opressor realiza contra ele. essas atitudes de deslegitimação do outro são movidas, acreditamos, pelo medo de ser deslegitimado, ou seja: os movimentos transfemininos — não todos, é claro — sentem-se ameaçados quando os movimentos transmasculinos em questão ganham voz, pois temem ser ofuscados e ter seus lugares ‘roubados’, fomentando um cenário de disputa em vez de complementaridade na luta. isso se observou, por exemplo, em demais movimentos feministas; vejamos:

o feminismo branco burguês — cisgênero, heteronormativo etc. — não abraçou inicialmente as demandas do feminismo negro, tal como este não abraçou as reivindicações do feminismo lgbti, e vice versa no caso destes dois últimos. os feminismos cisgêneros não abraçaram — e não abraçam, vale ressaltar — o transfeminismo, e o transfeminismo, como evidenciamos, não abraça as transmasculinidades dentro do próprio transfeminismo.

e por que exatamente isso ocorre? por que movimentos sociais que lutam por emancipação à modernidade, à colonialidade, a isso que denomina-se patriarcado e que agrega um conjunto de opressões diversas, de raça, gênero, sexualidade, classe, corpo etc., acabam por reproduzir comportamentos próprios à modernidade, à colonialidade e ao patriarcado? comportamentos estes que dicotomizam, silenciam e fomentam disputas, motivados pelo senso de ameaça e de ‘todos contra todos’.

piotr kropotkin pode nos ajudar a compreender essa empreitada. há uma distinção entre a perspectiva kropotkiniana e a darwinista no que diz respeito à “evolução” das espécies (evolução que colocamos à prova, inclusive: temos em vista as críticas pós-anarquistas à teoria de kropotkin, pois, embora identifique o apoio mútuo como motor da evolução, a própria concepção de evolução já é por si só problemática. no entanto, reconhecemos a importância do autor e de suas proposições para a constituição de movimentos sociais por emancipação, que se pautam, dentre outros aspectos, na ajuda mútua como ferramenta de luta e de construção coletiva).

se, por um lado, a teoria evolucionista de darwin concebia a seleção natural como o método absoluto da evolução, descritiva de um cenário de ‘vitória do mais forte (para se adaptar, enfim)’ frente à ‘derrota do mais fraco’, kropotkin concebe outro método como proponente da evolução: o apoio mútuo. não seria pela disputa que as espécies sobreviveriam, enfrentando as peripécias da vida cotidiana, os desastres costumeiros, as violências da existência. seria, por outro lado, a capacidade — inerente às espécies — de se ajudar coletivamente, de tecer redes de apoio, de suprir suas demandas reciprocamente. somente assim se poderia assegurar a sobrevivência, levando-nos de alguma forma à continuidade.

no entanto, a perspectiva evolucionista darwiniana é aquela vigente, e, tendo em vista seu pertencimento ao cânone das ciências naturais ocidentais, pode-se dizer que seus fundamentos têm como raiz a perspectiva moderna-colonial da ciência moderna, dotada de toda a sua autoridade e sua postura euro-ego-cêntrica diante de ciências outras.

sendo assim, a teoria da evolução vigente, isto é, legitimada, se desenvolve a partir dos pressupostos de vitória do mais forte, das dicotomias de superioridade/inferioridade, bem/mal, feminino/masculino, entre outras, e dicotomias que se inserem precisamente em cenários de disputa.

se os movimentos sociais por emancipação lutam justamente contra tais pressupostos moderno-coloniais, por que será que reproduzem exatamente seus métodos discursivos? talvez seja necessário um momento de maior atenção, autocrítica e debate sobre o que acontece dentro dos movimentos e coletivos que se autointitulam como libertários, ao invés de só denunciar e questionar os acontecimentos do seu entorno. temos que ter cuidado para não reproduzir as mesmas violências que nos destroem. devemos olhar para além das dicotomias e buscar perceber o que motiva nossas reações, o que nos afeta quando nos deparamos com tal ou qual termo, com tal ou qual reivindicação. acreditamos que a questão não seja se o termo boyceta é adequado ou não, ou se estudos sobre o uso do termo travesti em relação às transmasculinidades caracterizariam um ‘roubo identitário’. a questão, pensamos, deve ser o que motiva tamanha reatividade quando as transmasculinidades se autodeterminam, se reivindicam e se identificam na história e na linguagem.

autoritarismo acadêmico, uma não-denúncia

o fantasma da boa educação e dos bons costumes mantém um clima falso de concórdia. é um veículo extremamente silencioso e eficaz de violência, especialmente de violência institucional.

vejamos como isso se expressa em uma situação absolutamente hipotética. um professor universitário com anos de casa [e que se autointitula anarquista] justifica seus assédios sexuais e morais sob a prerrogativa de que “temos que acabar com as hierarquias” e “eu sou afetuoso mesmo”. e qualquer um que tente romper com o contrato da boa educação e dos bons costumes se torna um louco, um dramático, histérico, “jovem demais” para saber qualquer coisa, “incapaz” de interpretar as relações humanas, e passa a ser alvo de ameaças constantes, chantagens e abuso psicológico – sem falar em todo o punitivismo que ronda as conversas, reuniões e orientações de uma graduação ou pós-graduação.

a eficácia do contrato dos bons costumes está no fato de que não é um contrato; é um processo de exclusão e silenciamento que se enraíza em relações desiguais de poder. toda tentativa de desvelar o que está nitidamente acontecendo é calada. ou você é conivente ou se torna um ingrato, um [insira aqui qualquer ofensa de todo nível…]. há a expectativa de que você, primeiramente, performe um certo nível de “classe” enquanto estiver em ambientes nitidamente “classistas”. a tal ponto que o confronto com o agressor se volta a favor do agressor, que simplesmente continuará lá, em sua posição de poder, e é justamente por isso que esse texto não é uma denúncia – porque não pode ser; porque não temos os recursos para dar conta de uma denúncia; porque estamos do lado “histérico” da história; porque é “tarde demais” para fazer qualquer coisa. as bases das instituições acadêmicas se forjaram em processos de exclusão. dentro dessa situação ficcional e de outras que acontecem todos os dias, você se questiona: como eu permiti tantas violências contra mim em silêncio?

e então vêm as perguntas: por que deixou isso continuar com você? por que não fez nada? por que não se levantou e foi embora? às vezes, você fantasia sobre isso: se levantar e ir embora daquela sala, como podia ter feito tantas vezes. e por que não fez? não acho que se reduza a medo, nem a covardia. é mais do que isso. é um sentimento duplo: de que, ao mesmo tempo em que não há saída, uma hora precisa acabar, porque não é possível que continue. é tão absurdo que parece ser inacreditável, precisa ter um fim. mas continua e piora. no mínimo sinal de afastamento, há uma retroativa – “você é um traidor” – e uma reação – “se você não quiser estragar seu futuro, é bom que você se mantenha em silêncio”.

parece não haver possibilidade de simplesmente sair, porque ninguém pode te ajudar, ou então quem poderia estar com você não sabe a gravidade da situação [e ainda há o medo de que, mesmo sabendo, não considere relevante o suficiente para fazer alguma coisa]. no final sempre soa menor, então você não fala nada. pareceria um drama, que você é uma pessoa muito emocionada, ou, de novo, “jovem” demais para entender as relações acadêmicas.

em resumo, ainda que você tenha tentado se afastar e seguir sua vida, toda vez que você vê, hoje, uma nova pessoa entrando no mesmo lugar do qual você lutou para sair, você pensa em mil maneiras de tentar avisar, tentar dar os sinais, demonstrar que o pior está por vir. mas, ao mesmo tempo, a pessoa que perpetua essas violências se esconde por trás de uma figura de liberdade, de quem contraria as normas, de quem luta contra as opressões, de quem realmente está fazendo finalmente alguma coisa para acabar com toda a opressão do mundo. um verdadeiro libertário. o que fazer com isso? como denunciar uma pessoa tão importante para aquilo que acreditamos? num primeiro momento, podemos pensar: não é uma pessoa tão importante assim. é uma pessoa que comete assédios. precisamos denunciar. e novamente a instituição se coloca entre a disputa de narrativas, em que a figura do professor universitário sai ganhando e todo o restante se reduz a uma espécie de histeria coletiva. foi justamente isso que Miranda Fricker escreveu sobre injustiça epistêmica e injustiça testemunhal. não se trata somente do que se fala, mas de quem está falando e de que forma.

até que ponto vamos tolerar esse tipo de coisa em nossos próprios espaços? é curioso pensar, dentro dessa situação ficcional, em como essa pessoa não conseguiu se tornar uma figura importante nos ambientes onde já tentou se inserir. e é algo que você percebeu aos poucos e que ao menos te traz certa satisfação. pelo menos, em alguns espaços realmente ocupados por libertários estamos livres desse fantasma. ao retornarmos para o ambiente institucional, lá ele está com suas ficções.

ao mesmo tempo em que é um alívio não mais estar naquela situação, o fantasma permanece. como se libertar de anos de assédio moral? depois de todo o esforço que você fez para conseguir sair, se desvincular, romper efetivamente – tanto institucional como pessoalmente -, o fantasma ainda faz parte da sua vida, de como você se relaciona com outras pessoas, de como lida com uma relação de orientação, de como se vê, ou de como se autodeprecia.

na universidade, é mantido o [não-]contrato dos bons costumes e da boa educação, porque ninguém fala sobre isso, mas [quase] todo mundo sabe o que está acontecendo e o que aconteceu, e vai se manter assim.

nessa situação ficcional, o melhor que você fez foi se afastar – laço por laço, até o último vínculo. nesses casos, os ciclos não se encerram: é triste testemunhar, de longe, que outras pessoas, assim como você, já começaram a exercer a posição de subserviência que você “tão voluntariamente” ocupou. longe de você sugerir o que deve “ser feito”, até porque você sozinho não conseguiu fazer muita coisa… como consta no começo, isso não é uma denúncia. certamente não é uma carta. talvez seja um desabafo. talvez seja uma tentativa.

sobre a parada lgbtiap+ de são paulo

no dia 2 de junho de 2024, ocorreu a parada do orgulho lgbt de são paulo, repleta de bandeiras do brasil e empresas multinacionais patrocinadoras. na tentativa de ressignificar e “retomar” a bandeira nacional, de afirmar que o verde e amarelo é “para todes”, a parada lgbt se tornou, ao nosso ver, uma captura neoliberal, racista e governamental. para ilustrar, oferecemos uma comparação, que não consideramos desproporcional diante dos mais de 500 anos de colonialismo e colonialidade: se é impensável ressignificar a suástica nazista ou o símbolo do sionismo, como exatamente poderíamos ressignificar a bandeira do brasil? o que essa bandeira significa além de genocídio contra povos indígenas e africanos escravizados? as cores da bandeira, que a parada lgbt afirma serem “para todes”, foram escolhidas pelos responsáveis pela colonização dos territórios que convencionamos chamar de “brasil”. o que o lema “ordem e progresso” significa além de 500 anos de colonialismo, escravização e extermínio? o que significa efetivamente a ordem e o progresso tão fortemente bradados como símbolo de uma nação? a ordem como submissão à lei, o progresso como distanciamento de certo “primitivismo”: percebe-se a legitimação de um projeto colonialista global, que, em terras nomeadas brasileiras, culminou e culmina na perseguição de pessoas consideradas “desviantes sexuais”, na eugenia e no higienismo social.

o nacionalismo não começou com o governo bolsonaro e não terminou com ele. a apropriação da bandeira pelo bolsonarismo apenas evidenciou seu verdadeiro significado, sendo hasteada pelos herdeiros daqueles que hastearam as primeiras bandeiras no intuito de colonizar. a necessidade de hastear uma bandeira, de brandi-la com orgulho, somente denota o ímpeto de demarcação territorial, de circunscrição e cerceamento.

não contrariamos, com isso, as bandeiras de movimentos sociais minorizados, tendo em vista a importância de nos autodeterminarmos entre nós e diante daqueles que nos silenciam; contrariamos, na verdade, a perpetuação do territorialismo nacionalista e salvacionista que se alastra por algo tão insípido como uma bandeira. a captura fascista do símbolo nacional não nos exime da responsabilidade de rejeitar o nacionalismo, pois defender o capitalismo, o estado-nação e o patriotismo nesse território que chamamos de brasil é defender a supremacia branca, o colonialismo, o extermínio da população trans, a imperatividade do estado. é uma defesa da política de morte.

sobre a situação da saúde trans no perú

[03.06.2024, Rio de Janeiro]

em 10/05/2024, o governo peruano publicou o Decreto Supremo nº 009-2024-SA, que designa a transexualidade como uma patologia mental, sob alegação de que a patologização justificaria o acesso de pessoas trans a atendimentos médicos. referenciando-se no CID-10, que compreendia a transexualidade como um transtorno de identidade de gênero, o governo peruano previsivelmente recusou as tentativas de negociação de movimentos sociais lgbtiap+. esse reacionarismo tipicamente institucional demonstra a impossibilidade de se aliar a forças governamentais para defender pessoas trans, e as mais afetadas por essas mudanças são negras, indígenas e periféricas. no dia 31/05/2024, ativistas trans se reuniram em frente ao Ministério da Saúde peruano e protestaram até o Palácio da Justiça, demandando a revogação do decreto e a adoção do CID-11, segundo o qual a transexualidade seria uma incongruência de gênero.

contudo, o fato de que há um código de doenças para demarcar a transexualidade demonstra que ainda estamos subordinados a um esquema de patologização. a cisgeneridade, a heterossexualidade e a endossexualidade não são mencionadas nesses documentos oficiais da medicina. não se mensura o caráter racista e misógino da elaboração dos diagnósticos. não se assume que a demarcação de uma incongruência exige, implicitamente, a demarcação de uma congruência – que, no entanto, não é mencionada, muito menos reconhecida pelas instâncias médicas e psiquiátricas.

nos solidarizamos aos companheiros peruanos e afirmamos nossa profunda desconfiança em qualquer iniciativa institucional de saúde e assistência.

¡nada que curar!