espaço.
do latim spatĭum, algo que contém matéria, algo que ocupa um entre, algo que é ocupado por algo.
“não há mais espaço” – para quê?
“abra espaço” – para quem?
é algo que interfere, que sofre interferências. pensar em um espaço exige que o identifiquemos. não há espaço sem vínculo, pode haver espaço des-vinculado, mas não isolado. um espaço é como um sonho, uma linguagem que não se traduz, mas que se transcreve, pois fala a si em seu entorno: não há espaço apenas, há espaço sempre em relação.
significar um espaço anarquista não deve ser simples. exige que definamos ‘espaço’ e ‘anarquista’. se nos implicamos na tarefa de definir as coisas por meio da linguagem da representação – essa que nos foi ensinada -, já não podemos definir um espaço anarquista, ainda que usemos neologismos. as bases do que constitui um espaço, em nosso mundo, encerram as possibilidades de um espaço anarquista. não penso, com isso, que o anarquismo esteja fora do que entendemos como “nosso mundo”, mas sim que está inserido no sistema da representação e em oposição ao mesmo. um espaço anarquista seria um espaço de contínua oposição e criação.
disso, trago três questionamentos: como poderíamos nos opor a um sistema que constitui espacialidades – e aqui me refiro a registros cartoriais e leis de propriedade – quando nossas ferramentas de fundação de “espaços” dependem de instituições hierárquicas, burocráticas e cartoriais do mundo capitalista? se insistimos em construir algo (um espaço, que seja) que desobedeça a ‘ordem vigente’, que linguagem poderíamos empregar? se concordamos com a assertiva de Proudhon de que a “propriedade é roubo”, seria coerente atribuir o adjetivo ‘anarquista’ a um estabelecimento comercial com cnpj?
ouvi de uma pessoa querida que um espaço anarquista é um espaço onde há anarquistas. ora, o mundo é um espaço anarquista então. mas talvez o sentido da frase tenha sido outro: onde há muitos anarquistas, as relações firmadas desobedecem a ordem vigente, já não são hierárquicas, não se respeita autoridade, não se toleram opressões, e funda-se, portanto, um espaço anarquista. escrever essa última frase foi desafiador, pois nesse momento nada me parece mais tolo do que acreditar nisso. basta olhar em volta e observar os movimentos da militância branca, cis-heteronormativa, patriarcal e conservadora que perdura no anarquismo. afirmar, como fazem tantos críticos do “identitarismo”, que ‘anarquista’ não é uma identidade implica que não há algo como um ‘espaço anarquista’, um espaço adjetivado antes mesmo das práticas que o organizam.
David Graeber escreveu que “a última coisa que queremos é, afinal, impor modelos pré-fabricados de sociedade”. pois bem, organizar um ‘espaço anarquista’, se é que isso é viável nesse mundo, significa desorganizá-lo em primeira mão; significa se recusar a conceber uma noção de ‘espaço anarquista’; significa “fazer uma bagunça”, como escreveu Anastasia Murney, e destruir os sentidos que poderíamos, antes, atribuir a qualquer noção de ‘espaço’. porque essa noção envolve aquilo que a circunda, aquilo que a preenche; envolve tanto os sujeitos que habitam o espaço como o próprio status de sujeito, que a alguns é conferido e a outros, não. da desorganização, que entendo como desobediência, a organização se cria, jamais se encerrando em si mesma, e não se exime da necessidade de se destruir para então renascer.
voltemos ao que ouvi: a prática é o que funda o espaço; se há muitos anarquistas em um espaço, praticando a anarquia, se criaria um espaço anarquista, de cultura libertária. mas sinto uma inclinação a repensar o conceito de “cultura libertária”, assim como faz Tomás Ibáñez. para Ibáñez, a vontade de cultura libertária nos levaria à busca por unicidade, seria a expressão de uma pseudo-vontade de poder, de estabelecer uma cultura. se há pretensão de encerramento, como na definição de espaço anarquista, me parece haver, no fundo, uma pretensão de totalidade, de dar conta de tudo o que esse espaço poderia ser – especialmente quando esse espaço é fundado a partir da identificação de uma suposta falta.
Ibáñez pensa no sentido de uma anticultura. não no preenchimento de uma falta, mas na abertura de brechas, de recusar esse mundo tanto quanto imaginar outros radicalmente, e isso parece envolver um abandono e o desejo de destruir a espacialidade capitalista e a lógica mercadológica.
não consigo imaginar (radicalmente) espaços anarquistas que não se assemelhem a algo totalmente avesso à noção de propriedade (pensemos em okupas e ocupações, em iniciativas de autogestão), ou mesmo de cultura. que possamos construir espaços constantemente imaginados, coletivamente materializados, que não se encerrem em si mesmos, e que não contenham em si uma pretensão de totalidade.
GRAEBER, David. Você é anarquista? Disponível na Biblioteca Anarquista Lusófona.
IBÁÑEZ, Tomás. Interstícios Insurrectos: Antologia de Tomás Ibáñez. Lisboa: Barricada de Livros, 2022.
MURNEY, Anastasia. Making a Mess: Expanding Anarchist and Feminist Worlds. Coils of the Serpent v. 11, 2023, pp. 67-85.
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade? Lisboa: Editorial Estampa, 1975.