por Kell w Farshéa [1]
texto originalmente publicado em inglês no site Freedom Journal. traduzido por acervo trans-anarquista em janeiro de 2025. foi empregada linguagem neutra e inclusiva. o documento também pode ser acessado em nosso acervo digital.
O que significa ser trans anarquista neste momento do século XXI? O que significa ser uma pessoa trans inglesa, branca, da classe trabalhadora, vivendo em relativa segurança em Londres, neste momento de catástrofe climática global, em que as guerras se alastram pelos continentes, em que a força policial da superpotência desonesta estadunidense mata crianças negras impunemente, enquanto outro estado desonesto armado por essa superpotência mata crianças palestinas impunemente?
Como eu poderia analisar essa espiral de morte do capitalismo, do colonialismo e da tirania e depois ousar dizer “e os direitos trans”? No entanto, devo fazê-lo. Pois mesmo com o genocídio na Palestina e no Congo, a limpeza étnica dos Rohingya e dos Uyghurs, o contínuo apagamento dos povos indígenas, precisamos falar de pessoas trans, não-binárias e intersexo. Porque nossas histórias, diversas e complexas, ecoam pela história ainda antes da colonização europeia, da ascensão do capital ou do Estado e da sufocante ascensão do patriarcado cis-heterossexual. Nossa história é um obstáculo na estrada do assim chamado progresso, onde os binários de sexo, raça e gênero assumem grande destaque.
Como anarquista, como intersexo não-binária, mulher pansexual, minhes irmãnes e eu, ao longo de milênios, somos a prova de que a imposição forçada de categorias discretas de sexo/gênero e “outridade” existe para reprimir a existência livre e limitar nosso eu emocional, intelectual e social. Em nossa experiência vivida, ao recusarmos as classificações simplistas de macho/fêmea, homem/mulher, masculino/feminino – nossos atos de resistência são parte integrante do acender das revoluções.
A anarquia em si não é imutável. As “verdades” não estão gravadas em pedras; a anarquia evolui – não apenas em mais homens cis brancos europeus, mas em outras vozes, outras vidas. Todas as iterações da anarquia de mulheres (trans e cis), da maioria global, do mundo colonizado, em idiomas não europeus e, sim, de pessoas trans, não binárias e intersexo. Nós defendemos nossas verdades em todas as culturas e comunidades, mas somos considerades como armas que policiam as vidas de todos. A repressão de nossas existências é usada como uma ferramenta para derrubar as fronteiras de gênero e sexualidade, masculinidade e feminilidade. No entanto, pessoas, políticos, líderes religiosos, médicos e os “críticos de gênero” reservam seu abuso mais brutal, sancionado pelo Estado, às nossas crianças. No chamado Reino Unido, as crianças trans, não-binárias, de gênero diverso e intersexo estão sendo alvo de ataques nas escolas, no sistema de saúde, na mídia, nos serviços sociais, na família e na classe política.
Nossas lindas, frágeis e fabulosas crianças estão se aventurando pelo mundo, percebendo quem são e nomeando isso de uma forma que as pessoas da minha idade não conseguem nem imaginar ter coragem de fazer. E, em resposta, elas estão sendo vitimadas e abusadas em um nível estrutural.
No Reino Unido, nossos adolescentes e crianças terão seu acesso a serviços de saúde trans-aliados negado; só terão direito a bloqueadores de puberdade se concordarem em participar de projetos de pesquisa patrocinados pelo Estado. A secretaria de educação do estado propôs uma política para instruir as escolas a usar o nome morto e pronomes errados com as crianças, a dar informações a seus pais potencialmente hostis e a lhes negar informações que poderiam salvar vidas. A guerra travada contra nós não ocorre apenas como uma “guerra cultural” – ela é visceral, prejudicial e cruel. E a pior parte é que sabemos que esse fascismo de gênero não é genuinamente para proteger nenhuma criança. Nós e nossos filhos somos simplesmente danos colaterais, armas de distração em massa.
Mesmo assim, persistimos.
A solidariedade global demonstrada aos palestinos, das intervenções do governo sul-africano ao bloqueio dos fabricantes de armas, das marchas em massa aos boicotes individuais, da desilusão na base eleitoral de Keir Starmer e Joe Biden aos lucros corporativos prejudicados. É assim que a resistência se apresenta. E, nesse clima, os atos de solidariedade podem ser realmente muito pequenos – o simples fato de perguntar e acertar meus pronomes é um ato de resistência e solidariedade.
Eu sou uma anarquista mais velha que viu o fluxo e o refluxo dos partidos populistas de esquerda e assistiu, impotente, milhões de pessoas se jogarem no abismo fútil do socialismo democrático. Mas sinto coragem e força na recusa de comunidades, culturas e indivíduos que continuam escolhendo a liberdade e a pura audácia de confiar no amor uns dos outros.
Diante de um genocídio que acontece diante de nossos olhos, é difícil lembrar que nada dura para sempre. Como tudo pode mudar com o giro de uma moeda de nove centavos. Mas todos os dias, uma criança percebe que pode viver de forma diferente daquela que lhe foi designada no nascimento. E, nesses momentos, nascem mundos totalmente novos.
~Kell w Farshéa
Kell (elu) é poeta, escritore e historiadore. É anarquista e ativista há mais de quatro décadas.