por Bruno Latini Pfeil e Cello Latini Pfeil
Mikhail Bakunin escreveu que não nascemos livres, mas acorrentados a leis e moralidades, ao nosso berço de origem. Em suas palavras, “o homem não criou a sociedade, nasceu nela. Não nasceu livre, mas acorrentado, produto de um meio social particular criado por uma longa série de influências passadas, por desenvolvimentos e fatos históricos” (Bakunin, 1975, p. 12). Não é possível “partir do zero”, nem inventar linguagens e modos de vida desvinculados de onde nos encontramos. Não há como não nomear o mundo, a diferença e a norma. Contudo, é a institucionalização das nomeações que as produz e inscreve em políticas de aniquilamento. O culto à autoridade nos conduz a pensar em termos de governantes e governados, a adquirirmos certos ideais sobre nossos desejos e sexualidades. Em crítica a esse culto, o trans-anarquismo pode ser pensado como uma oposição tanto ao autoritarismo governamental como ao científico, que, no vasto campo de nomeações, designa certos corpos como monstros e outros como humanos.
Nomear a cisgeneridade toca no cerne da crítica libertária ao autoritarismo científico. Ao constrangermos aqueles que nos tratam como representações de diagnósticos, como monstruosidades, nos apropriamos do teor de ameaça que nos é atribuído – o monstro, afinal, personifica tudo aquilo que ameaça essa Humanidade à qual [não] pertencemos. Como figuras monstruosas, ameaçamos aquilo que se afirma como verdade. Todavia, quando nomeamos as raízes do Humano, compreendendo a historicidade do Monstro, ofendemos a norma, evidenciando seu medo e sua fragilidade.
Ofender a norma é um ato libertário que se apropria da linguagem num movimento disruptivo: constrangemos o ‘Eu’ cisgênero e argumentamos que a cisgeneridade é uma invenção que não beira a naturalidade; que a noção de natureza é uma ficção camuflada de verdade; afirmamos a irrepresentabilidade das vidas trans e a incapacidade de o Estado suprir nossas demandas. Em vez de assumir posturas assimilacionistas, anarquistas queer e trans-anarquistas defendem a emancipação social por táticas de combate à violência institucional, jamais firmando alianças com os braços do Estado. Há que se reconhecer os movimentos trans que lutam contra o Estado e suas instituições, e que não recorrem a seus tentáculos para mitigar as violências que o próprio Estado produz; que não confiam ao Estado a capacidade de nos proteger; e que não desejam se enquadrar em um violento ideal de humanidade.
A norma está onde diz que não está; se explicita quando inventa seu antagonismo. Ao passo que não há constrangimento em se nomear um corpo como monstruoso e embarreirar seu acesso à saúde; em intervir cirurgicamente em crianças intersexo para ‘adequá-las’ a um ideal cisgênero, endossexo e heterossexual; em reiterar a norma de modo vocabular, burocrático, cirúrgico e científico, a cisgeneridade institucional se recusa a nomear algo constantemente reiterado em todos esses processos. Denunciar a naturalização é uma das etapas do movimento anti-colonial por emancipação. É nesse sentido que defendemos um manejo trans-anarquista da linguagem, aliado à destruição do mundo como o conhecemos. Para construirmos outro mundo, é necessário que destruamos o atual; que nos apropriemos da ameaça que representamos para o Estado. E o manejo trans-anárquico da linguagem é um de nossos alicerces. A linguagem, por uma perspectiva trans-anarquista, é uma ferramenta disruptiva no próprio ato de nomear a norma e de prefigurar outras possibilidades de vida onde nossos corpos, desejos e pensamentos são tidos como possíveis.
Bakunin, Mikhail. O Conceito de Liberdade – Vol. 3, Porto: Rés Limitada, 1975