por Tía Akwa
essa tradução também pode ser encontrada em nosso acervo digital.
Para quem luta
Recentemente, em um espaço de discussão feminista, surgiu a questão de saber se os coletivos, espaços e atividades enquadrados no anarcofeminismo e no anarquismo queer deveriam ter caráter separatista, principalmente no que diz respeito à exclusão absoluta de indivíduos que podem ser caracterizados como homens cisgêneros (ou seja, não transgêneros) heterossexuais. Para nossa grande surpresa, descobrimos que, entre os participantes, a maioria esmagadora consentiu com essa exclusão, justificando-a com fórmulas como a de que esses indivíduos são “expoentes do patriarcado”, que não podem “liderar as lutas, nem integrá-las, apenas apoiá-las de fora” e isso porque a luta do (anarco)feminismo “não é deles, não é a sua luta”.
Qualquer pessoa que tenha se familiarizado com o ativismo feminista perceberá que essas formulações são comuns no chamado feminismo radical e no lesbofeminismo. Porém, a questão é se isso corresponde aos princípios do anarcofeminismo e do anarquismo queer: o anarcofeminismo é separatista? Qual é o lugar dos homens no anarcofeminismo? E se eles forem heterossexuais e cisgêneros? Faz alguma diferença se forem gays? Tentarei tecer algumas respostas sobre isso.
Quando se está discutindo “anarquismos”, costuma-se dizer que o anarquismo tem diferentes ramos ou tendências. Anarco-comunismo, anarco-mutualismo, anarco-primitivismo, anarco-individualismo etc. etc. Contudo, parece-me ser de extrema relevância entender em que medida tanto o anarcofeminismo como o anarquismo queer não são, e nunca foram, “ramos do anarquismo”.
Essa ideia fica cristalina se entendermos que, para que algo seja um ramo do anarquismo, deve apresentar uma concepção de anarquia que seja radicalmente distinta das demais. O anarco-primitivismo é um ramo do anarquismo porque apresenta uma posição sobre a anarquia entendida, entre outras coisas, como a abolição da técnica. O mutualismo e o anarco-capitalismo são ramos do anarquismo porque entendem a anarquia, entre outras coisas, como aquela em que o mercado é um eixo articulador da atividade produtiva, etc.
O anarcofeminismo e o anarquismo queer não são tendências porque sua compreensão da anarquia é simplesmente uma radicalização do que todas as formas de anarquismo têm em comum, ou seja, a luta contra todas as formas de autoridade e hierarquia. O anarcofeminismo e o anarquismo queer são o anarquismo se conscientizando e aprendendo com a luta feminista ao longo do século XX contra o patriarcado, o machismo, a homofobia, o sexismo, o tradicionalismo afetivo-amoroso-sexual e, em geral, qualquer imposição sobre o estilo de vida; é uma versão atualizada do próprio anarquismo.
Aqui, também, o anarquismo queer, que não é algo diferente do anarcofeminismo, mas sim uma radicalização dele, também deve ser levado em consideração. O anarquismo queer surgiu no final do século XX, principalmente a partir das lições do movimento transfeminista e de outras formas mais contemporâneas de feminismo, como o feminismo negro. Nesse sentido, o anarquismo queer é o anarcofeminismo atualizado e, ao mesmo tempo, ambos são, de fato, anarquismo. Entretanto, se assim for, o que devemos valorizar é o fato de que quem adere ao anarcofeminismo é quem adere ao anarquismo: os princípios do anarcofeminismo são os princípios do anarquismo.
Mas quais são as lições que o anarquismo aprendeu com o movimento feminista? Bem, elas são muito diversas e foram magistralmente levantadas por Peggy Kornegger no texto fundacional da década de 1970, “Anarquismo: la conexión feminista” e pela recente compilação de trabalhos sobre anarquismo queer intitulada “Queering anarchism”, editada por Deric Shannon, C. B. Daring, J. Rogue e Abbey Volcano. Considerando que seria excessivo para o escopo deste texto discutir todas elas, vou me limitar a dizer apenas o que é relevante para as perguntas apresentadas no início. Duas ideias centrais e suas consequências: interseccionalidade e a abolição do gênero.
A interseccionalidade é um conceito proveniente do feminismo que entende que a opressão sempre ocorre nas interseções. Raça, classe, gênero, nacionalidade, idade, sexo etc. são dimensões da vida humana que se entrecruzam e se interseccionam de maneiras muito diferentes, gerando uma experiência particular de opressão para cada pessoa. A experiência de opressão das mulheres de classe alta nas nações europeias é muito diferente da experiência de um homem negro em um subúrbio canadense, que também é muito diferente da experiência da mulher indígena nas terras altas da Bolívia ou do homem trans de classe média no Japão etc. Assumir uma análise interseccional no anarquismo mudou radicalmente sua concepção sobre a articulação de suas lutas. Se entendermos que todas as esferas de opressão estão entrelaçadas umas com as outras, o movimento revolucionário contra a opressão, ou seja, o movimento anarquista, deve ser único e deve atacar permanentemente todas as formas de opressão simultaneamente. Ao mesmo tempo, isso nos mostra que todas as lutas contra a opressão são relevantes e nenhuma pode ser colocada acima da outra, porque, ao deixar uma de lado, as outras também são inadvertidamente fortalecidas.
A análise interseccional, como J. Rogue[1] bem aponta, desfere um golpe bastante severo contra certos dogmas provenientes do feminismo lésbico e do chamado “feminismo radical”, a saber, que, considerando que a experiência de opressão que mulheres, homens, minorias ou dissidências podem compartilhar é muito diversa, não é possível, de forma alguma, falar de uma “experiência universal de opressão”. Novamente: uma mulher negra de classe alta em um país latino-americano tem uma experiência de opressão radicalmente diferente de uma mulher trans branca em Michigan. Isso impossibilita a defesa bem fundamentada da existência de “espaços seguros somente para mulheres ou dissidentes” ou “espaços separatistas”, na medida em que, quando esses são propostos, o que geralmente acontece é que as mulheres mais hegemônicas (brancas, de classe alta, educadas) acabam universalizando sua própria experiência em detrimento de todas as outras. Ademais, isso ignora o fato de que a opressão patriarcal pode ocorrer entre as mulheres quando há desprezo, imposição, zombaria, violência, abuso, etc., entre companheiras do mesmo coletivo. Esse fenômeno também ocorre em espaços separatistas de dissidência sexual e minorias LGBT, como nos lembra Abbey Volcano em seu texto “Police at the Borders”.
A interseccionalidade também nos leva a questionar as maneiras pelas quais a luta revolucionária é concebida. Aqui, entramos apenas provisoriamente no assunto. Certas tendências do feminismo elevaram ao nível de dogma que o feminismo é uma luta de e para as mulheres, e que a luta só poderia ser feita por mulheres. Para todas as mulheres? E quanto às mulheres militantes fascistas, conservadoras e de direita? Margaret Thatcher é um “sujeito político do feminismo”? E quanto aos ativistas anarquistas masculinos militantes que deram suas vidas pela causa da liberdade, incluindo a luta contra o patriarcado, eles não são “sujeitos políticos do feminismo”? Diante desses questionamentos, essas tendências esboçam duas palavras mágicas: “alienado” e “aliado”. As mulheres que reproduzem a lógica patriarcal seriam alienadas, pois não sabem que o patriarcado as oprime, e, ao mesmo tempo, os homens que lutam pela causa são “aliados” do movimento. Guarde essas perguntas, que serão respondidas quando abordarmos a questão da abolição do gênero.
A abolição do gênero é o desejo explícito da maioria dos movimentos feministas militantes e radicais, incluindo o anarquismo. Entretanto, entre as tendências do feminismo que aspiram a essa ideia, parece haver maneiras radicalmente diferentes de concebê-la. Uma parte considerável dos adeptos desse fim parece conceber a ideia de abolir o gênero como “deixar de se comportar de uma determinada maneira”, basicamente, da forma como os gêneros binários masculino e feminino são tradicionalmente concebidos. Nesse sentido, o gênero poderia ser abolido na medida em que homens e mulheres rompessem com os estereótipos e começassem a se comportar de forma contrária ou simplesmente diferente deles. Essa concepção, mais uma vez, para aqueles que já participaram ativamente do ativismo feminista, tende à transexclusão, na medida em que as pessoas trans aparentemente parecem querer viver exatamente de acordo com os estereótipos tradicionais de gênero. Uma mulher trans, por exemplo, pode querer adquirir traços tradicionalmente associados à feminilidade, usar vestido, perfume, etc.
O que precisa ser questionado, no entanto, é se essa forma de conceber a abolição de gênero entende o que está buscando e não erra o ponto em sua concepção. Os aprendizados do anarquismo queer são muito valiosos a esse respeito. O anarquismo queer entendeu muito rapidamente que é profundamente questionável conceber identidades de gênero profundas, transcendentes a meras ações. O que estaria por trás das imposições de gênero sobre as pessoas trans e cis seria uma concepção quase metafísica de identidade, em que as pessoas sugerem que quem quer que esteja à sua frente “é uma mulher” ou “é um homem” e deve agir de acordo com as expectativas existentes de “mulheres” ou “homens”. O que devemos observar, entretanto, é que o que é problemático em tal situação não é se a pessoa escolhe ou não se conformar com as expectativas ou imposições de quem lhe atribui uma determinada essência, mas a imposição em si e as próprias expectativas. A abolição do gênero não pode ser a atitude imbecil de agir exatamente da maneira oposta à prescrita pelo poder, mas algo muito mais simples: agir como se deseja agir. Na medida em que os coletivos feministas questionam o estilo de vida daqueles que decidiram agir de determinada maneira, seja trans, não binário, bissexual, heterossexual, assexual etc., estão agindo em uma espécie de patriarcado reverso que tem pouco apelo para a luta por uma liberação radical da vida das pessoas. Expressões nefastas como “lesbianismo político” ou as chamadas TERFs (Trans-exclutionary radical feminists, feministas radicais trans-excludentes) são justamente os desdobramentos dessa má interpretação da abolição do gênero.
Aqui descobrimos que o patriarcado é entendido como uma questão muito mais geral do que a tentativa de disciplinar pessoas e corpos de acordo com critérios tradicionais. Percebemos que qualquer imposição de um modo de vida, de um modo de se apresentar na sociedade, de um modo de amar e transar, de falar e se vestir, etc., etc., é patriarcal. A luta contra o patriarcado é precisamente a luta contra a imposição de estilos de vida, a luta para quebrar essas expectativas que estão constantemente sendo lançadas sobre as pessoas. Além disso, o uso de identidades dinâmicas permite que uma pessoa flua e explore, em qualquer direção que considere adequada, as maneiras pelas quais deseja se apresentar aos outros: não há outra identidade além daquela que ocorre na ação: a totalidade das expectativas que podem ser colocadas sobre as pessoas é limitada única e exclusivamente às ações presentes, aqui e agora, que a pessoa executa.
Compreender isso possibilita resolver as questões colocadas acima e romper radicalmente com os dogmas. A experiência da opressão patriarcal é sentida por qualquer pessoa que tenha escolhido viver de forma diferente das normas sociais, sejam elas normas sociais tradicionais ou de subgrupos de dissidentes. Uma pessoa teria que ter uma experiência muito limitada com pessoas cis para acreditar que tudo que não é transgênero é uma vantagem. Há mulheres e homens cis que optaram por não se adequar aos cânones tradicionais sem buscar a transição e são severamente repreendidos pelas pessoas ao seu redor. Seja porque uma mulher não quer se adequar aos padrões tradicionais de beleza ou às atividades tradicionais, seja porque os homens decidem expressar seus sentimentos abertamente, falar sobre seus problemas ou não se adequar aos papéis tradicionais de um casal. Isso também ocorre em grupos dissidentes, quando a assexualidade ou bissexualidade (ou incursões heterossexuais esporádicas por pessoas que se identificam como homossexuais) ou o fato de não se comportarem como o estereótipo de “homem gay” ou “mulher lésbica” são vistos com suspeita. Portanto, a conclusão é que todas as pessoas são oprimidas pelo patriarcado, algumas mais do que outras, e algumas também se ressentem quando seu desejo é não se comportar de acordo com as normas de seu ambiente. E isso obviamente significa que algumas pessoas nunca se sentiram oprimidas porque de fato agem de acordo com as expectativas. Assim, quebramos, antes de mais nada, o primeiro dogma: o feminismo que luta contra o patriarcado é algo que diz respeito a todas as pessoas: é a luta de todas as pessoas para viver da maneira que querem viver, sejam elas trans ou cis, mulheres ou homens, heterossexuais ou não heterossexuais. O movimento feminista, portanto, é uma luta para as mulheres e para os homens, mas será que também é uma luta dos homens?
A pergunta acima, de fato, só pode ser respondida se entendermos que o feminismo é um movimento político, e a questão agora está nos sujeitos políticos de um movimento político. Isso já foi aventurado mais atrás: na medida em que a interseccionalidade é uma realidade, o movimento anarquista deve estar unido e lutar onde quer que qualquer opressão ou hierarquia tente se impor na vida das pessoas. Os movimentos políticos buscam fins de mudança social e lutam contra estruturas, instituições e pessoas que querem levar a humanidade ao seu passado retrógrado e opressor. Qual é a conclusão óbvia? Que o sujeito político do (anarco)feminismo não são as “mulheres”, nem os “homens”, nem os “dissidentes”, nem qualquer outra pessoa pelo simples fato de querer ter um determinado estilo de vida ou de ter nascido com um determinado corpo. As pessoas não são “sujeitos políticos” por acidente. Os sujeitos políticos dos movimentos políticos que buscam a transformação social são, é claro, os sujeitos, homens e mulheres, cis ou trans, heterossexuais ou não, que querem lutar contra a opressão, que querem acabar com o patriarcado e que querem destruir o capitalismo e o Estado. Margaret Thatcher não é o sujeito político do feminismo, nem ninguém que queira ativamente preservar as opressões; esses são precisamente nossos inimigos, aqueles contra os quais lutamos. As expressões “aliado” e “alienada” se tornam uma cola que tenta forçosamente grudar todas as mulheres em um movimento político que não existe e no qual nem mesmo todas elas acreditam e, ao mesmo tempo, é um escudo para a formação de um movimento que incorpore todos os indivíduos que tenham convicção nele. Essas são expressões que excluem os verdadeiros companheiros de luta, enquanto inventam falsos aliados.
Qual é, então, o lugar dos homens hétero-cis na luta anarcofeminista? O mesmo que o das mulheres lésbicas, trans ou cis, o mesmo que o das pessoas assexuais e bissexuais, o mesmo que o dos homens gays, trans ou cis, o mesmo se em seus corações houver o ímpeto e a força para lutar pela anarquia, para acabar com todas as formas de opressão, inclusive o patriarcado. Assim, o anarcofeminismo não é e não pode ser separatista, porque é nítido quem faz parte de sua luta e quem são seus inimigos. O único separatismo admissível é aquele que consiste em separar do movimento qualquer pessoa que legitime a opressão.
[1] Rogue, J. Desesencializar el feminismo anarquista: lecciones desde el movimiento transfeminista. Disponível em: https://www.portaloaca.com/pensamiento-libertario/textos-sobre-anarquismo/15096-j-rogue-desesencializar-el-feminismo-anarquista-lecciones-desde-el-movimiento-transfeminista.html