acesso à edição completa e aos materiais separados:
https://transanarquismo.noblogs.org/revista-trans-libertaria-v-1-2024/
agradecemos a todes que enviaram seus materiais e confiaram nessa iniciativa. esperamos que esse projeto traga uma contribuição interessante para os vários núcleos, grupos, coletivos, frentes e indivíduos libertários que existem por aí.
com bastante satisfação, apresentamos a primeira edição da revista trans-libertária!
organizar essa revista é uma empreitada, uma iniciativa que corresponde a sentimentos tanto de entusiasmo como de aflição. nosso contato com o que se pode entender por perspectivas trans-anarquistas não é recente, embora algumas nomenclaturas nos pareçam quase inéditas. como escrevemos na apresentação do acervo trans-anarquista, onde essa edição fica hospedada, podemos entender perspectivas trans-anarquistas como um conjunto de movimentos libertários, trans, cuir/queer e transfeministas contrários às normatividades institucionais da modernidade e que se movimentam de modo transversal em relação às diferentes formas de violência que atravessam diferentes grupos. é uma definição bastante ampla, e não consideramos isso prejudicial.
algo que percebemos em inúmeras coletividades – anarquistas, libertárias ou o que quer que sejam – é uma espécie de isolamento discursivo que nos impede, descaradamente ou não, de traduzir nossos incômodos em palavras. é um regime linguístico que não nos oferece vocabulário para designar o que sentimos, porque se espera que não interpretemos, que não falemos sobre, que nos contentemos com a fixidez de categorias que não dão conta de nossas existências, de nossos corpos e desejos. nada mais justo, então, do que nos apropriarmos da linguagem e de criarmos a nossa própria. mas como criar uma outra língua se nossa musculatura foi forjada nesse mundo violento? como não corresponder àquilo que nos fere? uma de nossas feridas se refere à petulância acadêmica de tentar dar conta de tudo; uma petulância que se outorga a capacidade de determinar a verdade sobre si e sobre os outros. tantos acadêmicos estudam sobre gênero, violência e discriminação, escrevem sobre isso, analisam casos e narrativas, mas quantos deles identificam processos de violência que ocorrem diante de seus olhos? quantos estudam aquilo que fica nas entrelinhas, as normatividades, as formas de dominação, as instituições, e não percebem, ou fingem que não percebem, atos de transfobia, racismo, capacitismo ou misoginia subsumidos, subentendidos?
é doloroso não conseguir falar, mas é pior quando precisamos falar sozinhes; quando não temos quem fale conosco; quando temos de lidar com o silêncio dos outros – em outras palavras, com sua não-assumida conivência. é um silêncio geralmente respaldado por muitas justificativas. a mesma violência presente no silêncio é aquela que nos convence de que não há nada de errado acontecendo; é aquela que naturaliza o constrangimento do “outro”, que transforma a diferença em um antagonismo radical; que concentra seus esforços em políticas do aniquilamento. reconhecer o teor violento desse silêncio, ainda mais em meios que se dizem libertários, pode ser um dos caminhos para romper com ele.
não por acaso, algo bastante presente na literatura trans-anarquista – e não só – é o desabafo. muitos textos começam a partir de desabafos e se desenrolam em torno da necessidade de externalizar incômodos. e a responsabilidade por explicar que o movimento social não é menos normativo que qualquer outro espaço recai justamente sobre quem já não aguenta mais ter que falar. como lidar com as cumplicidades cisgêneras, brancas e normativas que estruturam as conversas? como estar no movimento social se nossos corpos não são realmente bem-vindos? como constranger os olhares normativos sem ter que se dar ao trabalho cansativo e desgastante de explicar – e explicar, e explicar, e explicar?
o que motiva a organização tanto do acervo trans-anarquista como da revista trans-libertária é o desejo persistente de tensionar – tensionar um anarquismo contraditoriamente conservador, que resiste a reconhecer suas normatividades e centralizações; tensionar os movimentos trans assimilacionistas, que resistem a reconhecer a captura do capitalismo, do pink money, de políticas partidárias; tensionar toda e qualquer pretensão de universalidade; tensionar as palavras que empregamos para dar conta de nossas existências.
repetimos novamente aquilo que escrevemos no acervo: longe de recorrermos a essencialismos, ou de afirmarmos que ser trans é ser anarquista, entendemos, como escreveu Audre Lorde, que “as ferramentas do senhor nunca vão desmantelar a casa-grande”. a emancipação de corpos subalternizados jamais será uma concessão das instituições que nos subalternizam. como forma de responder a isso, em junho de 2024 abrimos chamada para recebimento de materiais que tratem de trans-anarquismo, anarquismo cuir/queer, transfeminismo libertário, anarcofeminismo, e outros eixos de discussão que produzam, ou evidenciem, zonas de tensão. nossa expectativa é que isso contribua, de alguma forma e na medida do [im]possível, para a ampliação de diálogos, para a externalização de incômodos, para que consigamos nos identificar ou desidentificar com o que é trazido aqui, para que não adoeçamos – ou melhor, para que criemos vida: que não precisemos falar sozinhes; que, por um lado, reconheçamos a violência do silêncio e, por outro, que incorporemos o antagonismo radical, que incorporemos a ameaça. “Vivemos em um mundo desagradável”, escreveu Deleuze, e Mombaça nos convoca “a viver apesar de tudo. Na radicalidade do impossível”.
que possamos pensar em outras formas de vida onde nossas vidas sejam possíveis.