sobre boycetas, travestis e a sombra do oprimido

como costuma ocorrer quando pautas relativas às transmasculinidades ganham visibilidade, recentemente nos deparamos com a polêmica sobre o termo boyceta. seria este um termo adequado, equivocado, genitalista, contranormativo ou normativo? o que estariam propondo as pessoas que constituem suas identidades a partir deste termo e que dele o utilizam para se autodeterminar?

não podemos — e não nos interessamos por — generalizar experiências de autoidentificação, reduzindo sua multiplicidade a apenas uma motivação. as experiências transmasculinas que fazem sentido no espectro da identidade “boyceta” são plurais, e, embora compartilhemos vivências e demandas, não há apenas uma maneira de ser boyceta, tampouco apenas um único significado.

todavia, temos percebido certas posturas reativas ao trazemos nossas pautas à tona, ou simplesmente ao apontarmos para nossa existência, seja enquanto boycetas, seja enquanto transmasculinos de maneira geral. as mesmas posturas puderam ser observadas quando rodolpho correa, ator e pesquisador transmasculino, divulgou pelo mutha (museu transgênero de história e arte), junto dos pesquisadores jonas maria e ian habib, sua pesquisa sobre o uso do termo travesti com relação a pessoas transmasculinas. o termo travesti, como mostram os pesquisadores, foi historicamente utilizado para designar, no contexto brasileiro, pessoas trans, seja dentro das transfeminilidades, das transmasculinidades, das transgeneridades não-binárias etc. como consta no relatório mutha (2024): “inúmeras pessoas corpo e gênero variantes em mídias como jornais e revistas, principalmente a partir do século xx, eram referenciadas e apresentadas como travestis, que nem sempre podiam ser compreendidas dentro do escopo que hoje chamamos por transfeminilidades”.

o vídeo que expôs a pesquisa apresentou uma série de reportagens, evidenciando a generalidade histórica do termo travesti. o que ocorreu em seguida, todavia, foi uma publicação da antra em que escreveu que “homens trans, pessoas transmasculinas e não binárias devem produzir suas próprias narrativas e remontar as peças de seu percurso por emancipação. contudo, avaliamos que não é útil propor a dissolução de nossas diferenças e especificidades históricas”.

gostaríamos de saber como exatamente estudos de pessoas transmasculinas sobre o termo travesti estariam promovendo a ‘dissolução de nossas diferenças e especificidades históricas’. o que se ‘dissolveria’ com a compreensão da atribuição das travestilidades a pessoas transmasculinas em determinado contexto histórico? como pessoas transmasculinas, ao serem historicamente apontadas enquanto travestis, estariam ‘dissolvendo’ as travestilidades no contexto atual?

percebe-se uma enorme dificuldade em se identificar as transmasculinidades na história, principalmente pela análise das mídias, o que resulta em uma também gigantesca dificuldade em mapearmos as violências que as atravessam. a subnotificação de casos de violência contra pessoas transmasculinas é um impedimento para que nos movimentemos em prol de políticas públicas que nos contemplem e nos protejam. ao reconhecermos que, historicamente, as travestilidades também disseram respeito às transmasculinidades em certos veículos midiáticos, podemos mapear as violências que atravessaram as transmasculinidades por meio deste outro termo. no entanto, nossas tentativas em resgatar nossa história são vistas como ‘roubos’ identitários.

ao trazermos a polêmica do termo boyceta, acreditamos encontrar pontos em comum com a situação supracitada. o que percebe é a constância das tentativas de invisibilizar e deslegitimar nossas reivindicações e nossas histórias, desapropriando de nós a capacidade de autodeterminação. infelizmente, essas posturas são frequentes em inúmeros movimentos sociais por emancipação. como paulo freire bem o disse, o oprimido deve ter cuidado para não buscar refletir a sombra do opressor, realizando contra outros o que o opressor realiza contra ele. essas atitudes de deslegitimação do outro são movidas, acreditamos, pelo medo de ser deslegitimado, ou seja: os movimentos transfemininos — não todos, é claro — sentem-se ameaçados quando os movimentos transmasculinos em questão ganham voz, pois temem ser ofuscados e ter seus lugares ‘roubados’, fomentando um cenário de disputa em vez de complementaridade na luta. isso se observou, por exemplo, em demais movimentos feministas; vejamos:

o feminismo branco burguês — cisgênero, heteronormativo etc. — não abraçou inicialmente as demandas do feminismo negro, tal como este não abraçou as reivindicações do feminismo lgbti, e vice versa no caso destes dois últimos. os feminismos cisgêneros não abraçaram — e não abraçam, vale ressaltar — o transfeminismo, e o transfeminismo, como evidenciamos, não abraça as transmasculinidades dentro do próprio transfeminismo.

e por que exatamente isso ocorre? por que movimentos sociais que lutam por emancipação à modernidade, à colonialidade, a isso que denomina-se patriarcado e que agrega um conjunto de opressões diversas, de raça, gênero, sexualidade, classe, corpo etc., acabam por reproduzir comportamentos próprios à modernidade, à colonialidade e ao patriarcado? comportamentos estes que dicotomizam, silenciam e fomentam disputas, motivados pelo senso de ameaça e de ‘todos contra todos’.

piotr kropotkin pode nos ajudar a compreender essa empreitada. há uma distinção entre a perspectiva kropotkiniana e a darwinista no que diz respeito à “evolução” das espécies (evolução que colocamos à prova, inclusive: temos em vista as críticas pós-anarquistas à teoria de kropotkin, pois, embora identifique o apoio mútuo como motor da evolução, a própria concepção de evolução já é por si só problemática. no entanto, reconhecemos a importância do autor e de suas proposições para a constituição de movimentos sociais por emancipação, que se pautam, dentre outros aspectos, na ajuda mútua como ferramenta de luta e de construção coletiva).

se, por um lado, a teoria evolucionista de darwin concebia a seleção natural como o método absoluto da evolução, descritiva de um cenário de ‘vitória do mais forte (para se adaptar, enfim)’ frente à ‘derrota do mais fraco’, kropotkin concebe outro método como proponente da evolução: o apoio mútuo. não seria pela disputa que as espécies sobreviveriam, enfrentando as peripécias da vida cotidiana, os desastres costumeiros, as violências da existência. seria, por outro lado, a capacidade — inerente às espécies — de se ajudar coletivamente, de tecer redes de apoio, de suprir suas demandas reciprocamente. somente assim se poderia assegurar a sobrevivência, levando-nos de alguma forma à continuidade.

no entanto, a perspectiva evolucionista darwiniana é aquela vigente, e, tendo em vista seu pertencimento ao cânone das ciências naturais ocidentais, pode-se dizer que seus fundamentos têm como raiz a perspectiva moderna-colonial da ciência moderna, dotada de toda a sua autoridade e sua postura euro-ego-cêntrica diante de ciências outras.

sendo assim, a teoria da evolução vigente, isto é, legitimada, se desenvolve a partir dos pressupostos de vitória do mais forte, das dicotomias de superioridade/inferioridade, bem/mal, feminino/masculino, entre outras, e dicotomias que se inserem precisamente em cenários de disputa.

se os movimentos sociais por emancipação lutam justamente contra tais pressupostos moderno-coloniais, por que será que reproduzem exatamente seus métodos discursivos? talvez seja necessário um momento de maior atenção, autocrítica e debate sobre o que acontece dentro dos movimentos e coletivos que se autointitulam como libertários, ao invés de só denunciar e questionar os acontecimentos do seu entorno. temos que ter cuidado para não reproduzir as mesmas violências que nos destroem. devemos olhar para além das dicotomias e buscar perceber o que motiva nossas reações, o que nos afeta quando nos deparamos com tal ou qual termo, com tal ou qual reivindicação. acreditamos que a questão não seja se o termo boyceta é adequado ou não, ou se estudos sobre o uso do termo travesti em relação às transmasculinidades caracterizariam um ‘roubo identitário’. a questão, pensamos, deve ser o que motiva tamanha reatividade quando as transmasculinidades se autodeterminam, se reivindicam e se identificam na história e na linguagem.