autoritarismo acadêmico, uma não-denúncia

o fantasma da boa educação e dos bons costumes mantém um clima falso de concórdia. é um veículo extremamente silencioso e eficaz de violência, especialmente de violência institucional.

vejamos como isso se expressa em uma situação absolutamente hipotética. um professor universitário com anos de casa [e que se autointitula anarquista] justifica seus assédios sexuais e morais sob a prerrogativa de que “temos que acabar com as hierarquias” e “eu sou afetuoso mesmo”. e qualquer um que tente romper com o contrato da boa educação e dos bons costumes se torna um louco, um dramático, histérico, “jovem demais” para saber qualquer coisa, “incapaz” de interpretar as relações humanas, e passa a ser alvo de ameaças constantes, chantagens e abuso psicológico – sem falar em todo o punitivismo que ronda as conversas, reuniões e orientações de uma graduação ou pós-graduação.

a eficácia do contrato dos bons costumes está no fato de que não é um contrato; é um processo de exclusão e silenciamento que se enraíza em relações desiguais de poder. toda tentativa de desvelar o que está nitidamente acontecendo é calada. ou você é conivente ou se torna um ingrato, um [insira aqui qualquer ofensa de todo nível…]. há a expectativa de que você, primeiramente, performe um certo nível de “classe” enquanto estiver em ambientes nitidamente “classistas”. a tal ponto que o confronto com o agressor se volta a favor do agressor, que simplesmente continuará lá, em sua posição de poder, e é justamente por isso que esse texto não é uma denúncia – porque não pode ser; porque não temos os recursos para dar conta de uma denúncia; porque estamos do lado “histérico” da história; porque é “tarde demais” para fazer qualquer coisa. as bases das instituições acadêmicas se forjaram em processos de exclusão. dentro dessa situação ficcional e de outras que acontecem todos os dias, você se questiona: como eu permiti tantas violências contra mim em silêncio?

e então vêm as perguntas: por que deixou isso continuar com você? por que não fez nada? por que não se levantou e foi embora? às vezes, você fantasia sobre isso: se levantar e ir embora daquela sala, como podia ter feito tantas vezes. e por que não fez? não acho que se reduza a medo, nem a covardia. é mais do que isso. é um sentimento duplo: de que, ao mesmo tempo em que não há saída, uma hora precisa acabar, porque não é possível que continue. é tão absurdo que parece ser inacreditável, precisa ter um fim. mas continua e piora. no mínimo sinal de afastamento, há uma retroativa – “você é um traidor” – e uma reação – “se você não quiser estragar seu futuro, é bom que você se mantenha em silêncio”.

parece não haver possibilidade de simplesmente sair, porque ninguém pode te ajudar, ou então quem poderia estar com você não sabe a gravidade da situação [e ainda há o medo de que, mesmo sabendo, não considere relevante o suficiente para fazer alguma coisa]. no final sempre soa menor, então você não fala nada. pareceria um drama, que você é uma pessoa muito emocionada, ou, de novo, “jovem” demais para entender as relações acadêmicas.

em resumo, ainda que você tenha tentado se afastar e seguir sua vida, toda vez que você vê, hoje, uma nova pessoa entrando no mesmo lugar do qual você lutou para sair, você pensa em mil maneiras de tentar avisar, tentar dar os sinais, demonstrar que o pior está por vir. mas, ao mesmo tempo, a pessoa que perpetua essas violências se esconde por trás de uma figura de liberdade, de quem contraria as normas, de quem luta contra as opressões, de quem realmente está fazendo finalmente alguma coisa para acabar com toda a opressão do mundo. um verdadeiro libertário. o que fazer com isso? como denunciar uma pessoa tão importante para aquilo que acreditamos? num primeiro momento, podemos pensar: não é uma pessoa tão importante assim. é uma pessoa que comete assédios. precisamos denunciar. e novamente a instituição se coloca entre a disputa de narrativas, em que a figura do professor universitário sai ganhando e todo o restante se reduz a uma espécie de histeria coletiva. foi justamente isso que Miranda Fricker escreveu sobre injustiça epistêmica e injustiça testemunhal. não se trata somente do que se fala, mas de quem está falando e de que forma.

até que ponto vamos tolerar esse tipo de coisa em nossos próprios espaços? é curioso pensar, dentro dessa situação ficcional, em como essa pessoa não conseguiu se tornar uma figura importante nos ambientes onde já tentou se inserir. e é algo que você percebeu aos poucos e que ao menos te traz certa satisfação. pelo menos, em alguns espaços realmente ocupados por libertários estamos livres desse fantasma. ao retornarmos para o ambiente institucional, lá ele está com suas ficções.

ao mesmo tempo em que é um alívio não mais estar naquela situação, o fantasma permanece. como se libertar de anos de assédio moral? depois de todo o esforço que você fez para conseguir sair, se desvincular, romper efetivamente – tanto institucional como pessoalmente -, o fantasma ainda faz parte da sua vida, de como você se relaciona com outras pessoas, de como lida com uma relação de orientação, de como se vê, ou de como se autodeprecia.

na universidade, é mantido o [não-]contrato dos bons costumes e da boa educação, porque ninguém fala sobre isso, mas [quase] todo mundo sabe o que está acontecendo e o que aconteceu, e vai se manter assim.

nessa situação ficcional, o melhor que você fez foi se afastar – laço por laço, até o último vínculo. nesses casos, os ciclos não se encerram: é triste testemunhar, de longe, que outras pessoas, assim como você, já começaram a exercer a posição de subserviência que você “tão voluntariamente” ocupou. longe de você sugerir o que deve “ser feito”, até porque você sozinho não conseguiu fazer muita coisa… como consta no começo, isso não é uma denúncia. certamente não é uma carta. talvez seja um desabafo. talvez seja uma tentativa.