agradecemos ao coletivo AntiOrdem por nos enviar a presente tradução, publicada originalmente no site Nova Plebe, e que divulgamos a seguir:
[Aviso de conteúdo: além da transfobia em abstrato, este artigo discute assédio, violência e abuso. Algumas fontes vinculadas para fins de referência apresentam abusos e calúnias transfóbicas.]
Adendo do tradutor: eu sinto que o aviso original não foi claro o suficiente. Novamente, para fins de demonstração do problema, algumas das fontes citadas são explicitamente transfóbicas. Por favor, pense duas vezes antes de conferir se esse é um assunto que te deixa desconfortável.
Deve-se notar também que algumas fontes estão datadas, o que se espera devido à idade do artigo.
— Samuel N. Marques (Samu).
CRÉDITOS:
Versão original: Anarchasteminist.
Tradução: Samu.
Tradução do Gráfico: Volf.
Consultoria: Gabriel C.
Revisão geral: Volf, Flari Moon.
A transfobia é uma questão de classe. Com isto quero dizer que numa sociedade de classes que também é profundamente transfóbica, é impossível falar sobre transfobia significativamente sem falar também sobre classe. As pessoas trans têm maior probabilidade, em igualdade de circunstâncias, do que os nossos colegas cis de cair nos setores mais explorados e oprimidos da classe trabalhadora e a medida em que a transfobia afetará negativamente a vida de qualquer pessoa trans será mediada pela sua classe econômica. Este artigo não pretende ser uma análise abrangente de todos os aspectos desta questão, mas contribuir para uma conversa contínua em torno dela e ilustrar uma perspectiva de luta de classes sobre questões de transgeneridade.
Por transfobia quero dizer dois fenômenos relacionados:
- Hostilidade aberta e intencional ou desrespeito pelo
bem-estar de pessoas trans e; - Estruturas e sistemas sociais que colocam as pessoas
trans em relativa desvantagem em relação às pessoas
cis na sociedade.
Estes dois tipos de transfobia não são estritamente distintos e muitas Vezes um cria ou reforça o outro.
Muitas vezes, ao se discutir a transfobia, o discurso popular centra-se na hostilidade interpessoal aberta e nos crimes de ódio violentos nas ruas. Embora estas sejam de fato questões reais e muito sérias, este foco no interpessoal e sua manifestação conduz muitas vezes a não se reconhecer os efeitos econômicos mensuráveis da transfobia nas vidas trans. Isto constitui uma forma de violência oculta, endêmica e sistemática contra as pessoas trans da classe trabalhadora.
Um relatório da UE de 2015 [1] descobriu que as pessoas trans na União Europeia tinham maior probabilidade do que seus colegas cis de estarem entre os 25% com rendimentos mais baixos, e que cerca de um terço das pessoas trans relataram ter sofrido discriminação no local de trabalho no ano anterior ao inquérito e uma proporção semelhante sofreu discriminação enquanto procurava moradia. Não é de surpreender que, dados os elevados níveis de discriminação no local de trabalho e o estigma social geral, as pessoas trans sejam desproporcionalmente mais propensas a sofrer de desemprego.
Emma Rundall realizou uma pesquisa com pessoas trans como parte de sua tese de doutorado de 2010 [2] e descobriu que 14% dos entrevistados estavam desempregados, cerca de duas vezes e meia a taxa de desemprego nacional da época (página 139 da tese), o que é consistente com uma tendência geral nos
estudos, que apontam taxas mais elevadas de desemprego entre pessoas trans.
A discriminação habitacional e as elevadas taxas de rejeição e de abuso familiar também levam a taxas mais elevadas de situação de rua para as pessoas LGBTQ em geral e, em particular, para jovens LGBTQ. Um relatório de 2015 do Albert Kennedy Trust [3] descobriu que jovens LGBTQ estavam “grosseiramente super-representados nas populações de jovens sem-teto”, afirmando que um em cada quatro jovens sem-teto eram LGBTQ, o relatório também descobriu que a maioria dils jovens LGBTQ sem-teto relataram rejeição ou abuso em casa como um fator importante na sua situação de rua, uma vez que uma esmagadora maioria de fornecedores de habitação não reconhece as necessidades únicas e específicas desta comunidade marginalizada em termos de apoio habitacional. É difícil encontrar números específicos apenas para pessoas trans no Reino Unido, no entanto, no Canadá, uma nação desenvolvida culturalmente semelhante, a organização comunitária e de pesquisa Trans Pulse realizou um estudo sobre os resultados de saúde em 123 pessoas trans com idades entre 16 e 24 anos [4] com a intenção de medir o efeito do apoio parental. Todos os entrevistados que relataram pais “fortemente apoiadores” relataram estar alojados adequadamente, no entanto, quase metade dos dois terços dos entrevistados que não tinham pais fortemente apoiadores estavam “alojados inadequadamente” (sem-teto ou em situação de habitação precária), cerca de um terço das amostras total.

Para além dos efeitos econômicos da transfobia em si, podemos também considerar as intersecções entre transfobia e classe, ou seja, as formas como a classe e a transfobia interagem e ampliam os efeitos uma da outra; a maior resiliência financeira das classes média e alta, a capacidade das pessoas trans mais ricas de pagar para evitar algumas formas de transfobia, a natureza de classe das burocracias que as pessoas trans são frequentemente forçadas a atravessar, e a elevação de vozes privilegiadas na comunidade trans como as vozes autênticas de todas as pessoas trans.
Um componente central da transfobia é atualmente o controle médico, o processo pelo qual as pessoas trans são forçadas a passar por obstáculos semi-arbitrários para ter acesso a certos tipos de cuidados de saúde específicos para pessoas trans. Em Educação Sexual: Gênero e Regeneração de Mulheres Lisa Milbank discute a experiência da vida real (RLE) [5], um período de tempo em que se espera que as pessoas trans apresentem “em tempo integral” como seu gênero para ter acesso a certos tipos de cuidados de saúde, como uma forma de “ruptura” socialmente imposta em que as mulheres trans são submetidas a “uma experiência de surto público, composta de olhares constantes, assédio transfóbico e violência potencial, sem acesso a grande parte do treinamento (intensamente de dois gumes) dado às mulheres cisgênero sobre como sobreviver a isso”, enquanto Milbank se concentra na experiência das mulheres transgênero em particular, isto também se aplica, em certa medida, à experiência de outras pessoas trans. A capacidade de alguém passar por cis (de ser interpretade pela maioria das pessoas como uma pessoa cis do gênero apropriado) influenciará fortemente até que ponto o RLE é uma experiência perigosa e potencialmente traumática. Uma vez que passar por cis assume a forma, em parte, da capacidade de cumprir normas cis convencionais, sendo elas próprias fortemente classificadas (e racializadas), a capacidade de uma pessoa trans para o fazer será mediada pelo seu status de classe. Ou seja, quanto mais rica for uma pessoa, maior será a probabilidade de ela poder tomar medidas eletivas adicionais (depilação extensa, roupas especiais para esconder ou acentuar características corporais específicas de gênero, etc.) para aumentar suas chances de passar como cis. Desta forma, as pessoas trans da classe média e da classe dominante são mais facilmente capazes de entrar pelos portões para receber os cuidados de saúde e evitar os efeitos nocivos da RLE numa sociedade transfóbica. Da mesma forma, uma vez que a transfobia muitas vezes assume a forma de discriminação institucional e econômica e/ou rejeição familiar e comunitária, a segurança financeirade uma pessoa trans individual passa a ser a sua capacidade de lidar financeiramente com o isolamento e de se afastar de situações prejudiciais (por exemplo, um bairro em que estão frequentemente assediades ou uma casa de família onde são rejeitades ou abusades) é a chave para a sua capacidade de sobreviver e prosperar numa sociedade transfóbica. Embora todas as pessoas trans experimentem e sejam prejudicadas pela transfobia, a extensão desse dano terá um inevitável e forte corte de classe.
Viver como uma pessoa trans hoje em dia é se encontrar frequentemente esbarrando nas diversas burocracias que lhe servem de base, desde coisas tão teoricamente simples como mudar o nome legal de alguém, até passar pelos departamentos de reclamações governamentais ou empresas a fim de garantir algum tipo de responsabilização por outro caso de transfobia. Enquanto isto seja, em teoria, algo que qualquer pessoa pode aprender a fazer, estas instituições burocráticas são complexas e excludentes por natureza e muitas vezes funcionam para favorecer as pessoas da classe média. Desta forma, mais uma vez as pessoas trans da classe trabalhadora carregam um fardo adicional com a transfobia.
Dado que pessoas trans têm uma probabilidade desproporcional de viver na pobreza e os piores efeitos da transfobia são sentidos sobretudo pelas pessoas da classe trabalhadora, por que isto não faz parte do discurso midiático sobre as pessoas trans? Por que algumas das vozes trans mais proeminentes da mídia são figuras ricas e de direita como Caitlyn Jenner? Parte disso ocorre precisamente porque a transfobia tem um forte corte de classe; tal como discutido acima, as pessoas mais ricas terão mais facilidade em “passar” e cumprir os padrões de conformidade cis-heteronormativos esperados das vozes profissionais nos meios de comunicação social. Da mesma forma, é verdade que as pessoas trans ricas e de classe média têm mais probabilidades de ter as ligações necessárias para terem uma presença importante nos meios de comunicação social. Quando ela inclui qualquer tipo de voz trans em primeiro lugar, o discurso sobre questões trans na mídia hegemônica é dominado por uma minoria não representativa de mulheres trans ricas, brancas, de classe média. Seria negligente da minha parte não notar aqui uma ironia óbvia, uma vez que, embora esteja longe de ser rica e nunca tenha sido, como estudante branca de pós-graduação, estou longe de representar a maioria das pessoas trans e em minha defesa, não pretendo.
Uma forma comum de rejeitar as tentativas das pessoas trans de levantar questões que nos afetam ou criticar instituições, ou figuras públicas, que nos prejudicaram como grupo é nos considerar privilegiades. “Pessoas trans são um bando de gente de classe média ou um bando de estudantes universitários ricos que estão apenas procurando algo do que reclamar”. Por exemplo, depois que a jornalista Suzanne Moore saiu em um discurso bizarro e transfóbico no Twitter [6] em resposta às críticas sobre o texto de um de seus artigos, a colega de carreira no jornalismo Julie Burchill escreveu um artigo, inicialmente publicado no Observer, mas que acabou retirado e depois republicado pela Spiked [7], que, embora consistisse na maioria numa série de insultos transfóbicos, também ilustrava perfeitamente esta tendência ideológica. Após afirmar que ela e outras jornalistas transfóbicas são “parte da pequena minoria de mulheres de origem da classe trabalhadora que conseguem sobreviver no que costumava ser chamado de Fleet Street”, Burchill continua retratando as pessoas trans como acadêmiques com “grandes doutorados”, tentando silenciar as mulheres cis da classe trabalhadora argumentando sobre “semântica” (a semântica neste caso é o uso que Moore faz de “transexuais brasileiras”, um grupo atormentado por níveis particularmente elevados de pobreza e violência [8] como um termo pejorativo descartável). Embora certamente | existam academiques trans, estamos longe de ser a maioria das pessoas trans ou mesmo de ativistas trans, nem somos necessariamente tão privilegiades como Burchill gostaria de sugerir. Ao
envolverem-se neste apagamento das pessoas trans da classe trabalhadora, os transfóbicos conseguem banalizar os graves efeitos materiais da transfobia, conforme discutido acima, e excluir retoricamente as pessoas trans da classe trabalhadora.
No seu excelente ensaio de 2008 “O multiculturalismo liberal é a hegemonia — é um facto empírico” — resposta a Slavoj Zizek [9], Sara Ahmed salienta que o racismo é frequentemente projetado na classe trabalhadora branca, com as proibições liberais à intolerância aberta servindo apenas como um meio de transferir a intolerância para alguns outros marginalizados. Vemos um processo semelhante com a transfobia, o preconceito contra as pessoas trans é codificado como definitivamente da classe trabalhadora e, portanto, a existência de pessoas trans da classe trabalhadora pode ser ignorada como impossível por definição. Um jornalista bem pago do Observer pode ridicularizar as pessoas trans em massa como crianças de classe média, obcecadas com identitarismo, porque todos sabem que as verdadeira classe trabalhadora é branca, cishetetero e hostis a qualquer pessoa que não seja branca ou cishetetero. A realidade, claro, é que esta imagem de uma classe trabalhadora “comum” como padrão é uma fantasia, a classe trabalhadora é uma classe estranha, maravilhosa e diversificada, e apenas uma política que reconhece as muitas e variadas formas como vivenciamos a exploração e a opressão podem permitir-nos construir um movimento para acabar com elas e, em última análise, abolir a própria classe.
CITAÇÕES:
[1] Being Trans in the EU: Comparative analysis of the EU LGBT survey data.
Disponível em: https://fra.europa.eu/sites/default/files/fra-2015-being-trans-eu-
comparative-summaryen.pdf
[2] Rundall, E. C. (2010). “Transsexual” people in UK workplaces: An analysis of
transsexual men’s and transsexual women”s experiences. PhD Thesis. Oxford
Brookes University. Disponível em:
https://radar.brookes.ac.uk/radar/file/517779d1-f95f-7b7b-e2b9-368c9clfc784/1/rundall20 1 Otransexual.pdf
[3] LGBT Youth Homelessness: A UK NATIONAL SCOPING OF CAUSE,
PREVALENCE, RESPONSE, AND OUTCOME. Disponível em:
https://www.taipawb.org/wp-content/uploads/2018/07/LGBT-Youth-Homelessness-A-UK-National-scoping-of-cause-prevalence-response-and-outcome.pdf
[4] Impacts of Strong Parental Support for Trans Youth: A report prepared for
Children”s Aid Society of Toronto and Delisle Youth Services. Disponível em:
https://transpulseproject.ca/wp-content/uploads/2012/10/Impacts-of-Strong-
Parental-Support-for-Trans-Youth-vFINAL.pdf
[5] Sex Educations: Gendering and Regendering Women. Disponível em:
https://radtransfem.wordpress.com/2012/02/03/sex-educations-gendering-and-
regendering-women/
[6] Suzanne Moore: timeline of trans-misogynistic twitter rant. Disponível em:
https://archive.is/cZGpCYselection-113.0-113.58
[7] Hey trannies, cut it out: Where do dicks in terrible wigs get off lecturing
us natural-born women about not being quite feministic enough? Disponível em:
https://archive.is/X VrUPáselection-244.0-244.1
[8] One LGBT person is killed every 25 hours in Brazil. Disponível em:
https://www.thepinknews.com/2017/01/28/one-lgbt-person-is-killed-every-25-
hours-in-brazil/
[9] Liberal multiculturalism is the hegemony — it’s an empirical fact” — a response to Slavoj Zizek. Disponível em: https://libcom.org/article/liberal-multiculturalism-hegemony-its-empirical-fact-response-slavoj-zizek-sara-ahmed.