A traição do partido trabalhista à saúde trans

Pessoas trans devem formar coalizões para enfrentar um governo que se alia à crueldade

por Kell w Farshéa

texto publicado em 30 de outubro de 2024 no site Freedom News. tradução por acervo digital trans-anarquista.

Do genocídio em Gaza à recusa em se pedir perdão pela escravização de milhões de africanos, do controle de natalidade à proibição de todos os cuidados de saúde para pessoas trans menores de 18 anos – o governo de Keir Starmer nos mostra sua obstinada determinação em se colocar, juntamente ao seu líder, no lado da repressão, da crueldade e do fascismo.

Anarquistas ficaram roucos gritando, em meio ao barulho da propaganda eleitoral, que votar não vai libertar ninguém, mas o governo Starmer esperou apenas oito dias para Wes Streeting defender a decisão do governo conservador de retirar o financiamento do NHS e a prescrição privada de cuidados de saúde de afirmação de gênero para menores de 18 anos. Isso deixou crianças e jovens sem acesso a cuidados de saúde e informações educacionais de qualidade revisadas por pares — uma situação inédita desde a época da Seção 28. Em maio, o Chalmers GIC & NHS Lothian, na Escócia, “congelou” os encaminhamentos para cuidados de afirmação de gênero para adultos de 18 a 24 anos, citando a Cass Review. Este pode ser o primeiro passo de uma missão transfóbica em que, após ter conseguido eliminar terapias, tratamentos e prescrições para crianças e jovens, o próximo alvo são os adultos. Isso certamente expõe o fato de que não se trata e nunca se tratou de crianças pré-púberes. Sempre se tratou da erradicação e do silenciamento de toda a população trans. Acontece que as crianças pré-púberes eram o alvo mais fácil e emocionalmente sensível para começar.

À luz do caso Cass e da liderança assumida por Streeting e Starmer, ativistas estão relatando um aumento no número de médicos que decidiram parar de prescrever terapia hormonal para adultos trans. Com o colapso do Gender GP no início deste ano, as opções para adultos trans acessarem terapias hormonais já foram significativamente reduzidas. Agora também está nítido que recorrer aos tribunais não é uma forma eficaz de lutar por cuidados e tratamentos para a população trans no Reino Unido.

Mas há mais por vir. Em agosto, o NHS England anunciou que havia nomeado o Dr. David Levy para liderar uma revisão dos serviços de saúde para adultos trans, em conformidade com as recomendações da Cass Review. Ativistas trans temem que isso gere a mesma falha na abordagem de pesquisa que caracterizou a Cass Review. A nova revisão de Levy assusta pessoas trans, não binárias, intersexou e gênero-não-conformes, pois ameaça destruir até mesmo as disposições mais básicas que temos na lei, na medicina e em nossas vidas sociais.

SOLIDARIEDADE DESTEMIDA
Faltam três meses para a data da minha cirurgia. Recebo meu estrogênio por meio de uma receita do Sistema Nacional de Saúde (NHS). No último fim de semana, eu estava em uma confraternização familiar, onde uma pessoa que provavelmente se considera uma aliada questionou a raiva que sinto pelos anos que passei na lista de espera para a cirurgia, comparando minha transição a ter câncer. Se eu tivesse câncer, será que eu gostaria que os recursos do NHS fossem gastos no tratamento da doença e não em uma preocupação secundária como a cirurgia de afirmação de gênero? Mordi a língua porque estava em um evento familiar importante, comemorando as bodas de diamante de um casal que sempre se esforça para usar meu nome e pronomes corretos. O que eu queria dizer, mas não disse, era que, na verdade, não: se eu tivesse câncer amanhã, ainda assim gostaria de fazer minha cirurgia de afirmação de gênero antes de qualquer cirurgia para o câncer, porque se estivesse deitada em uma enfermaria me recuperando do câncer, gostaria de ser tratada com respeito, não como um objeto de repulsa ou diversão.

Passei muito tempo com medo de ser quem sou e ninguém, nem Keir Starmer, nem Kemi Badenoch, nem o Dr. David Levy, vai me dizer, pelo resto da minha vida, quem eu sou, de que cuidados de saúde preciso, qual é o meu nome ou quais são os meus pronomes.

Lembrei-me do Dr. James Barry, que se tornou um dos cirurgiões mais importantes da medicina britânica do século XIX. Ele deixou instruções claras de que, após a morte, seu corpo não deveria ser despido, lavado e vestido, mas que deveria ser enterrado com as roupas com que morreu. Ele tinha um bom motivo. Infelizmente, seus desejos não foram respeitados. Ao remover suas roupas, descobriu-se que ele tinha um corpo “feminino”. Durante décadas, ele foi descrito como uma mulher que teve sucesso em uma profissão masculina disfarçando-se de homem; ele foi aclamado pelas feministas da história, que o consideravam uma heroína. Foi somente nos últimos anos, quando pessoas trans e não binárias começaram a se inserir nos debates, que as pessoas começaram a questionar se James era, de fato, alguém que hoje poderíamos descrever como trans. Que talvez ele estivesse vivendo sua melhor vida como homem em uma profissão masculina e na companhia de homens. Talvez a razão pela qual ele não quis ser despido após a morte seja a mesma razão pela qual eu priorizaria a cirurgia de redesignação de gênero em vez do tratamento do câncer: porque na vida e na morte, ele e eu queremos ser vistos como quem dizemos ser — e não como as pessoas nos definem com base em nossos órgãos genitais.

Minha vida tem sido uma contradição de sorte e tristeza. Levei até os 54 anos para finalmente perceber que a solução para minha terrível disforia de gênero não estava sendo resolvida ou enfrentada ao me identificar como um homem feminino ou “um homossexual afeminado” e que, na verdade, passei mais de 40 anos da minha vida tentando esconder minha transgeneridade. Passei décadas da minha vida sendo marginalizada pela sociedade, pela comunidade lésbica e gay, pelos profissionais da área médica, pela mídia e pela classe política. Tive sorte porque, em 2020, consegui me inscrever em um programa piloto em Londres chamado Trans Plus, na Dean Street, que me acelerou as consultas, os marcos e as listas de espera. Portanto, estou a apenas alguns meses da cirurgia, tendo passado por todo o processo médico em apenas cinco anos. Muitas pessoas esperam esse tempo todo apenas pela primeira consulta de avaliação.

Passei minha adolescência, meus vinte e trinta anos fazendo piquetes em lojas, veículos de comunicação, delegacias, autoridades locais e departamentos governamentais por questões tão diversas quanto óbitos de pessoas sob custódia policial e a crise da AIDS. Sim, deixamos as pessoas desconfortáveis quando elas tomavam atitudes intolerantes! De marchas por Mansfield e Orgreave a ações antifascistas, boicotes à caça e direitos de lésbicas e gays, saímos dessas identidades isoladas e das caixas criadas para nós pelo estado, pela política eleitoral e pelos antigos binários simplistas e, em vez disso, construímos coalizões de resistência além das divisões. Construímos conexões e comunidades de resistência, encontramos amizades e co-conspiradores.

Devemos nos inspirar em grupos como o ACT UP e menos em instituições de caridade do terceiro setor, como a Stonewall. Precisamos quebrar o modelo de impunidade. O Transgender Action Block vem fazendo piquetes contra as TERFs há algum tempo e construindo redes offline de resistência. Recentemente, o excelente Trans Kids Deserve Better começou a fazer piquetes em departamentos governamentais e também levou a luta diretamente ao escritório eleitoral de Wes Streeting. Eles criaram a conta @KidsAreDyingWes no Instagram, onde você pode baixar um desenho de caixão e criar uma mensagem para Wes Streeting, secretário de saúde e o político LGBTIA mais graduado da história política britânica. Streeting escolheu uma carreira ministerial de alto escalão em detrimento de sua própria comunidade e traiu as crianças trans. Todos os dias, deixam um ou mais caixões do lado de fora do escritório de seu eleitorado para lembrá-lo disso.