por NN
texto originalmente publicado em espanhol, no Periodico Libertaria, em 7 de setembro de 2024. traduzido pelo acervo trans-anarquista em dezembro de 2024. essa tradução também pode ser encontrada em nosso acervo digital.
Com o surgimento de várias tecnologias antropocêntricas no espaço, nosso título não é mais uma questão de ficção. Apesar do fanatismo de ultra-dogmáticos religiosos e da conversa fiada neoliberal, os ricos estão prestes a destruir o espaço. A destruição calamitosa do planeta Terra pelo capitalismo é inevitável. Nesse sentido, falar de marcianos é realidade e não ficção. Assim, quando evocamos o título da obra de Ray Bradbury, nos refugiamos em uma escrita breve e verdadeira, ou seja, o contrário da ficção. Durante esses meses, e apesar do ambiente escasso e repressivo do Boluarte Genocida, houve vários eventos de natureza feminista, anarquista, anarco-feminista e trans-anarquista, esta última se o termo existir (que alguns chamam de A.Queer).
1) Há alguns meses, a banda gringa “Bikini Kill” se apresentou de graça nesse canto do mundo. O feminismo, como parte dos valores da banda, foi o ponto de mobilização de diferentes pessoas (fãs ou novatos). E nada é mais legal do que relembrar aqueles tempos em que as pessoas costumavam encontrar grandes bandas em lugares inóspitos por acaso. No entanto, temos que informar a nossas leitoras que esse show gerou alguns problemas desagradáveis entre nós. Não estamos falando da banda, mas de um pequeno grupo de funados, funables[2] e punksmachitos que se desconstruíram horas antes para ir fazer seu “vacilo”. É por isso que, após o show, houve reclamações, por meio de redes pessoais e públicas, de algumas performances de abertura: “Fico com nojo de ver rostos questionáveis como se nada estivesse acontecendo em suas vidas”, disse uma delas, referindo-se à presença desses funados e apañadores[3] hipócritas. Durante o show, compas nos informaram que também testemunharam, para sua surpresa, amigos dos funados, aqueles que são apañadores ou “neutros”. É incrível que uma banda feminista reúna esses caras, e o fato é que a cultura limeana do pendejo[4] era mais poderosa. A cereja do bolo foram os machões punks que se meteram ou quiseram fazer um empurra-empurra na frente sem respeitar o slogan da banda: “homens atrás”. Depois que as pessoas reclamaram e expressaram seu desconforto, eles ganharam um passe com “isso é separatismo”, “sou fã do Bikini Kill” e “me discriminam por ser homem”. Em Lima, quem se veste de “punk” acaba sendo funado, funable, apañador ou neutrozinho.
Às vezes, a intenção dos organizadores é não expor o público a essas cenas, mas lembre-se: Bikini Kill é uma banda feminista. Portanto, não está em suas mãos que sujeitos repugnantes se infiltrem. O show termina e esses punks saem para a farra (apoiando a indústria da cerveja que sustenta a exploração sexual/escravidão na selva), pegam seus trapos clássicos e fazem feiras de zines que nunca leram (nota: na feira deles não havia um único fanzine feminista ou anarcofeminista). Continuando, as pessoas que organizam não podem administrar absolutamente tudo. Há boas intenções, mas seria muito lamentável odiar sem reconhecer nossas limitações (quem nunca passou por algo assim, ou nunca viu aqueles funados que vão aos eventos de forma descarada para intimidar ou mostrar sua masculinidade mais tóxica?)
Há outros exemplos, que já testemunhamos, em que as intenções podem ser as mais honestas, mas em circunstâncias difíceis elas se tornam contraproducentes devido ao ego e ao protagonismo.
2) Vejamos o caso de uma marcha feminista em uma situação de repressão. Alguns podem pensar que vamos criticar es cidadães, mas não é o caso… Há um caso bem conhecido de um pseudojornalista no YouTube que sai para registrar os rostos e os corpos das compas nas marchas feministas, um rosto que muitas vezes foi protegido pela corja. Ele grava compulsivamente e sempre deixa todas desconfortáveis, além de apelar para que divulguem tudo em seu canal no Youtube. Enquanto algumas compas pacíficas pediam para o cara sair, outras do “black bloc” passavam ignorando a cena, talvez não estivessem sabendo de nada… o problema é que quando as companheiras se aproximavam delas para pedir apoio para expulsar o cara e dar uma boa borrachada para que ele nunca mais aparecesse, só recebiam uma resposta: “Eu sou black bloc, não me diga o que fazer, eu sei o que fazer”, e continuavam avançando e se diluindo entre todos os manifestantes. No final, a passeata foi uma daquelas completamente pacíficas, uma das muitas cidadãs… os dias e as noites se passaram, e compas se perguntaram: será que eu errei ao pedir apoio? será que eu disse alguma palavra que as incomodaria? será que houve outras emergências? De qualquer forma, até agora não houve resposta, o sujeito continua impune e os disfarces pretos estão na moda.
Igreja e TERFs: Aliança Fatal (parece que muitas radfem queriam vandalizar durante a marcha!)
Outro episódio um pouco perturbador, embora não relacionado às pessoas organizadoras, foi em um evento contra as prisões. A causa contra as prisões é a causa do anarquismo, a maioria das ideologias a considera ambígua. Nesse sentido, é muito bom que tais eventos estejam ocorrendo nesse território. No entanto, somos tão poucos que, às vezes, aparecem alguns oportunistas ou niilistas medíocres que nem sequer sabem onde estão.
3) Em Lima, a contracultura está morta há anos. Com a chegada do feminismo militante, muitos que se diziam “aliados” da causa social desapareceram e se refugiaram em pequenos espaços na esperança de reproduzir seu comportamento e discurso misógino. O evento correu bem, foi à noite, as pessoas estavam se encontrando pela primeira vez, vendo fanzines, fotos e livros antiautoritários, etc. Compas nos informaram que aproveitaram a ocasião para distribuir coisas dos últimos protestos e adesivos anarcofeministas. Havia algumas pessoas do lado de fora, bebendo, se agitando e fazendo barulho, nada fora do comum. A surpresa veio quando entraram… era uma banda que iria se apresentar. A noite continuou, adesivos foram aceitos, agradecimentos mútuos foram feitos e “que grande mensagem” foi ouvida. A atmosfera e o companheirismo podiam ser vistos e ouvidos. Em um espaço confinado, a banda “chongera”[5], desorientada, já procurando participar, olhava para o palco com ceticismo. As pessoas entram e saem, os sapatos fazem barulho… uma compa chega de bom humor para dar adesivos para a banda, acha que é gente com a mesma opinião. Ela mostra seus adesivos, com mensagens diversas, um vem e outro vai, ninguém escolhe nada… o silêncio é quebrado, alguém vê um adesivo a favor do aborto, um adesivo frontal… o cara, que tem uma guitarra elétrica nas costas, abre a boca e diz: “Sou vegano, sei do sofrimento dos animais e, por causa da bioética, sou contra o aborto e vou argumentar isso para vocês”. A compa anarco-feminista e neurodivergente é bombardeada com informações, uma após a outra, com os argumentos clássicos dos livros didáticos da extrema direita pró-feto. A compa simplesmente diz: “não estou aqui para te educar” e vai embora. Não há mais adesivos, é hora de ir para casa…
A questão do veganismo, da bioética e do aborto está ganhando força. No México, os departamentos acadêmicos de filosofia nas universidades estão sendo tomados por “especialistas em bioética” que são militantes de extrema direita e que têm entre seus convidados TERFs com seu biologicismo barato. Anos atrás essa subdisciplina era um escudo do animalismo para combater o especismo, hoje a glória de ontem é um corpo apodrecido da extrema direita (de Peter Zionazi Singer à moderada gringa Nussbaum).
4) Para finalizar, devemos descrever obrigatoriamente uma noite de música. E dizemos obrigatória, no sentido mais positivo da palavra, porque quem apresenta sua arte, um álbum de estreia, é ume compe. É raro que anarquistas em Lima produzam algo para além da classe trabalhadora, pois há uma abundância de sujeitos da classe trabalhadora com masculinidades normativas. Entretanto, essa noite foi excepcional…
Nos disseram que o presente que nos deram no bikini kill é de outro compa [por meio de outro meio/post faremos o possível para divulgar seu trabalho]. Quem diria que o mundo é tão estreito.
Um após o outro, as solas dos sapatos se desgastaram em um corredor e muitas pessoas perguntavam: “o USB, o USB?” ou “onde está o alto-falante?”, etc. O murmúrio é alto e não há música de fundo… Todos esperam o show completo, olham as decorações e caminham pela feira. Com uma maioria absoluta de pessoas lgtbq+, a discriminação comum de Lima é diluída e o espaço é realmente seguro para todes. A arte é apresentada em uma atmosfera amigável, onde falhas, improvisação e erros são recebidos com aplausos e mensagens empáticas. Às vezes, a verdadeira rebelião é vista em lugares subestimados (aqueles onde as masculinidades e os corpos hegemônicos são ignorados porque não são vistos), e esta noite isso aconteceu em um desses lugares. Se pudermos resumir o dia artístico em palavras, devemos gritar as seguintes palavras: trans-anarquismo, autogestão, arte, felicidade, nervos e ilusões.
Expressamos nosso cumprimento ae compa por seu esforço e por fazer uma simbiose de sua arte com o ativismo anarquista. Também saudamos a rede de ajuda mútua que tem apoiado o projeto, uma pequena rede que esperamos que possa ser fortalecida e talvez pensar em outras coisas: mais álbuns, mais artistas transmasculinos, compilações e até mesmo selos musicais que sejam pontos de encontro, companheirismo, ações diretas e propostas para as diversidades lgtbq+.
Para ver parte da apresentação, aqui está um fragmento: https://archive.org/details/eska_20240907 [seu álbum pode ser encontrado em todas as plataformas digitais!].
Você gosta do termo trans-anarquismo? Não, por quê?
Venham, então, outras crônicas, mas que sejam iguais à quarta. Saúde e A.
NN
[2] N.T.: não encontramos tradução de funados e funables para o português, mas encontramos que o uso desses termos é forte em redes sociais e seu significado gira em torno de ações repreensíveis ou tidas como vergonhosas cometidas por um indivíduo.
[3] N.T.: não encontramos tradução exata de apañadores para o português, mas encontramos que o uso desse termo gira em torno de indivíduos que apreendem coisas ilícitas, ou de modo ilícito.
[4] N.T.: palavra em espanhol que, no contexto em que foi utilizada, se refere a atitudes e comportamentos machistas de homens (cis) com mulheres.
[5] N.T.: não encontramos tradução de chongera para o português, mas encontramos que se refere a um termo usado no sul da Flórida e que designa mulheres de classe trabalhadora, que defendem a liberação sexual, a livre expressão etc.