por lvysyn
texto originalmente publicado em inglês, em 01/04/2028, no site libcom. traduzido pelo acervo trans-anarquista em dezembro de 2024. a tradução completa pode ser encontrada no acervo digital.
O anarco-sindicalismo é um movimento que visa a libertação de todas as pessoas oprimidas pelo capitalismo através de sua luta pela abolição do capitalismo e pela criação de uma sociedade socialista libertária, ou Anarquista. Um dos grupos de pessoas oprimidas pelo capitalismo é o de pessoas transgêneras, fato que conheço bem por ser uma mulher trans. As pessoas trans são aquelas que não se identificam com a classificação de gênero que lhes foi designada ao nascimento. Nossa sociedade determina a identidade de gênero que as pessoas podem ter com base em seus órgãos reprodutivos, portanto, as pessoas são designadas como “macho” ou “fêmea”. Pessoas trans são aquelas que rejeitam as identidades de gênero que lhes foram atribuídas e obtêm/criam novas identidades de gênero para si mesmas. Essas pessoas podem se identificar como homens, mulheres, ambos ou nenhum.
PATRIARCADO E CAPITALISMO
Nossa sociedade capitalista é patriarcal, ou seja, aqueles que se identificam como homens têm poder sobre aqueles que se identificam como mulheres. Os homens constituem a maioria da classe dominante e seus lacaios burocráticos, como políticos ou CEOs, e as mulheres constituem a maioria da classe trabalhadora. Dessa forma, os homens geralmente detêm a maior parte da riqueza e do poder na sociedade e predominam os papéis de gênero que privilegiam o poder dos homens. Os homens são vistos como inerentemente masculinos e poderosos, enquanto as mulheres são vistas como inerentemente carinhosas e sem vontade própria. Dessa forma, a sociedade é construída em torno do poder masculino. Instituições como o Estado são baseadas em ideias masculinas de competição, guerra e controle. Esse sistema patriarcal é baseado na reprodução.
As mulheres são predominantemente encarregadas das tarefas domésticas, já que são (supostamente) cuidadoras e fracas, e os homens são predominantemente encarregados de ser os chefes de família e sair para ganhar a vida vendendo sua força de trabalho no mercado, já que são (supostamente) fortes e condicionados a trabalhar. Nesse cenário, as mulheres realizam uma grande quantidade de trabalho não remunerado para o capitalista que emprega seus maridos e para a classe capitalista em geral, pois realizam o trabalho necessário para manter a vida do trabalhador e criar a próxima geração de trabalhadores exploráveis. De fato, a mulher se torna membro da classe trabalhadora por meio desse trabalho não remunerado, pois está realizando trabalho para os lucros da classe capitalista.
Mesmo depois que as mulheres conseguiram acessar a força de trabalho e obtiveram a capacidade de vender diretamente sua força de trabalho para a classe capitalista no mercado, elas foram sobrecarregadas com o que é chamado de “segundo expediente”. Elas ainda cuidam da maior parte das tarefas domésticas, mas também saem para trabalhar e, com base nas normas de gênero, precisam conciliar a vida profissional com a vida de mãe. Dessa forma, o capitalismo mantém as mulheres sob controle e dá aos homens vantagens de riqueza e poder/status social para extorquir o trabalho não remunerado das mulheres para a classe capitalista.
OPRESSÃO TRANS E CAPITALISMO
As pessoas trans se enquadram nisso pelo fato de rejeitarem as classificações de gênero patriarcais que lhes são atribuídas ao seu nascimento. O gênero é uma questão de identificação pessoal e não de órgãos reprodutivos, mas o patriarcado diz a todos nós que nossas identidades de gênero são estritamente baseadas em partes do nosso corpo, apesar de muitas pessoas nascerem sem os órgãos sexuais tradicionais ou sem a tradicional combinação cromossômica. Assim, pessoas trans ficam cronicamente subempregadas e, portanto, cronicamente empobrecidas e são desproporcionalmente vítimas de violência. Ataques racistas, queerfóbicos[1] e misóginos contra mulheres trans racializadas são uma ocorrência regular, e muitas são assassinadas. Pessoas trans são socialmente impedidas de entrar nos banheiros que desejam porque são vistas como pessoas do gênero oposto ao qual se identificam. Pessoas trans são legalmente classificadas pelo Estado conforme o gênero que lhes foi atribuído no nascimento, muitas vezes com um nome associado a esse gênero. Somos vistas como antinaturais, doentes mentais ou carentes por atenção, apesar de muitas sociedades indígenas e asiáticas terem uma ampla gama de expressões de gênero que historicamente não se encaixam no binário masculino/feminino baseado nos órgãos reprodutivos.
Assim, o patriarcado no capitalismo também gera a opressão contra as pessoas trans, sendo que as normas e instituições sociais estão muito mais atentas aos interesses das pessoas cis (não-trans) do que aos das pessoas trans. Dessa forma, pessoas trans são transformadas em uma população excedente e supérflua para o capitalismo, marginalizadas, reprimidas, mortas, espancadas e feridas.
TRANS-FEMINISMO
Nos anos 80, predominantemente mulheres trans racializadas envolvidas no movimento feminista organizaram um movimento dentro dele com base em uma crítica à corrente principal do movimento feminista. A crítica era de que a corrente principal do movimento feminista representava os interesses das mulheres cis brancas de classe média em detrimento dos interesses das mulheres mais pobres, das mulheres racializadas e das mulheres trans. Sem dúvida, esse era o caso em um movimento feminista posterior à era dos direitos civis dos anos ’60 e ’70, em que as lutas de diferentes tipos de grupos marginalizados haviam sido dominadas por políticos e capitalistas em prol de seus próprios interesses. No movimento das mulheres, a ação radical de base das mulheres havia se esgotado e organizações como a HRC[2] haviam se tornado parte da burocracia estatal nos EUA, sob o pretexto de lutar pelos interesses das mulheres, com a intenção real de lutar por suas próprias carreiras.
Esse sub-movimento dentro do feminismo foi chamado de “trans-feminismo” e enfatizou a opressão das mulheres trans e das mulheres racializadas, especificamente. Ele desenvolveu uma narrativa feminista que se rebelou contra o típico “feminismo branco”, ou seja, o feminismo baseado nos interesses de mulheres brancas, cis e de classe média.
ANARCO-SINDICALISMO
A história do anarco-sindicalismo é longa, e há grandes volumes de textos dedicados a ela, portanto, abordarei apenas um pouco da história básica e as ideias fundamentais da teoria e da prática do anarco-sindicalismo. O anarco-sindicalismo é uma estratégia que os anarquistas adaptaram ao combinar o “sindicalismo revolucionário” (organização de sindicatos de trabalhadores militantes para garantir os interesses dos trabalhadores e derrubar o capitalismo para criar o socialismo) e sua filosofia política anarquista (uma posição do movimento socialista que sustenta que o socialismo só pode ser estabelecido por meio da luta auto-organizada dos oprimidos contra todos os sistemas de dominação verticais, como o capitalismo e o Estado). Dessa forma, o anarco-sindicalismo tornou-se a teoria e a prática do movimento trabalhista anarquista no final do século XIX e início do século XX. O anarco-sindicalismo permanece vivo e atuante até os dias de hoje, com grupos de propaganda anarco-sindicalista e sindicatos revolucionários em todo o mundo.
POR UM ANARCO-SINDICALISMO TRANS-FEMINISTA
O transfeminismo busca abolir o patriarcado e a opressão contra pessoas trans que o acompanha. Conforme explicado acima, a opressão contra pessoas trans e o patriarcado são reproduzidos e formados pelo capitalismo. Não pode haver liberação trans ou liberação das mulheres em geral sem a destruição do capitalismo e a liberação da classe trabalhadora. Ninguém pode ser livre quando existe uma sociedade construída sobre a exploração de uma classe por outra. O capitalismo somente é possível quando a maioria das pessoas não possui as ferramentas que utiliza para produzir os bens que precisa consumir para sobreviver. Essa é a dimensão de classe do capitalismo, em que uma pequena minoria de pessoas (capitalistas) controla a produção e o processo de produção. Como a produção é propriedade da classe capitalista, no capitalismo a maioria das pessoas precisa vender sua capacidade de trabalho (força de trabalho) para a classe capitalista no mercado, concordando em trabalhar para empresas capitalistas. Em troca, elas recebem um salário que, segundo Piotr Kropotkin e Karl Marx, é apenas cerca de um terço do que os trabalhadores produzem enquanto trabalham para essas empresas. O restante é desviado para o bolso do proprietário capitalista da empresa e colocado à venda no mercado para gerar lucros, onde os trabalhadores compram o referido produto com seus salários para sobreviver.
Então, como nós, transfeministas, podemos nos livrar do capitalismo para ter uma sociedade melhor? O anarquismo, como filosofia política, busca abolir o capitalismo em favor de uma sociedade sem distinções de classe, em que a produção seja de propriedade coletiva e, como tal, todas as instituições coercitivas, como o Estado, desapareçam e sejam substituídas pela livre cooperação dos trabalhadores para atender às suas necessidades. Esse tipo de sociedade seria o “socialismo” ou “comunismo”. Como somente aqueles oprimidos pelo capitalismo têm o poder para desmantelá-lo, o anarquismo sustenta que os trabalhadores e as pessoas oprimidas pelo capitalismo por meio de mecanismos como o patriarcado e a transfobia precisam se organizar diretamente, sem a supervisão de qualquer partido externo, contra o capitalismo e a favor do socialismo.
Como podemos criar essa luta auto-organizada? Os anarquistas adaptaram o anarco-sindicalismo porque a estratégia do anarco-sindicalismo é criar um movimento anarquista de massa auto-organizado por meio da organização dos trabalhadores em associações militantes que eles mesmos controlam (sindicatos) e por meio dessas associações que lutam por seus interesses contra os da classe capitalista, bem como contra o capitalismo como um todo e, portanto, por sua derrubada e substituição pelo socialismo.
Como as pessoas trans e mulheres também são oprimidas pelo capitalismo, o movimento anarco-sindicalista precisa apoiar a luta das pessoas trans e mulheres contra sua opressão. Isso envolve apoiar as pessoas trans e as mulheres de todas as formas possíveis no desenvolvimento de sua luta específica e auto-organizada contra a transfobia e o patriarcado. Por sua vez, a organização anarco-sindicalista internacional AIT enfatizou a liberação das mulheres como um aspecto fundamental da autoemancipação da classe trabalhadora, não apenas falando da boca para fora sobre sua importância, mas com o objetivo de dar a homens e mulheres trabalhadores a mesma voz dentro da organização e criar espaços específicos para que as mulheres defendam seus interesses específicos enquanto pessoas que sofrem opressão de gênero. Quando foi fundada no século XX, a AIT foi nomeada em referência à “International Workingmen’s Association” (Associação Internacional dos Trabalhadores[3]) fundada no século XIX. Pelo motivo específico da igualdade de gênero, ela retirou o termo “workingmen” e o substituiu por “workers”, tornando-se a “International Workers’ Association” [Associação Internacional de Trabalhadores].
No século XIX, o sindicato anarco-sindicalista da Alemanha, o FAUD, criou espaços específicos para que as mulheres discutissem a opressão entre elas. Isso se deveu ao fato de a FAUD reconhecer que o fato de as mulheres serem relegadas ao trabalho doméstico as levava a serem exploradas pela classe capitalista. Esse projeto foi limitado no sentido de que nunca questionou realmente a suposição de que as mulheres deveriam ser donas de casa e, portanto, não conseguiu lhes conferir um lugar expressivo no movimento. Dito isso, o projeto ainda é notável em termos da experiência do anarco-sindicalismo associado à liberação de gênero. A mãe do anarco-feminismo (anarquismo que adapta uma versão anarquista específica do feminismo), Emma Goldman, era anarco-sindicalista e defendia o sindicalismo como estratégia do movimento trabalhista.
Na revolução social anarco-sindicalista na Espanha, em 1936-7, quando os trabalhadores assumiram o controle da produção e da administração social, o patriarcado continuou a existir dentro da sociedade controlada pelos trabalhadores. As mulheres ainda eram relegadas ao trabalho doméstico e não eram tratadas como iguais aos homens na luta revolucionária em prol de uma nova sociedade. Assim, um grupo anarco-sindicalista com o nome de “Free Women” surgiu para tratar desse problema. Elas lutaram para que mulheres fossem consideradas revolucionárias em pé de igualdade com os homens, promovendo a organização das mulheres e desafiando as narrativas patriarcais do movimento anarquista dominado por homens.
A libertação das pessoas trans, das mulheres e da classe trabalhadora da sociedade capitalista e a construção de uma sociedade livre exigem um casamento entre a política anarco-sindicalista revolucionária e um feminismo trans-inclusivo. Eu chamaria isso de “Trans-Feminismo Anarco-sindicalista”.
BIBLIOGRAFIA
Gender, Power, and Struggle, Polite Ire
Wage Labor and Capital, Karl Marx
Conquest of Bread, Peter Kropotkin
Lexicon: Gender, Institute For Anarchist Studies.
Trans FAQ, GLAAD
Anarcho-Syndicalism, film by Thomas Beckmann, Barbara Uebel, and Markus Hoffmann
Fighting For Ourselves, Solidarity Federation
Work, Anarchist Federation
De-essentializing Anarchist Feminism: Lessons From The Trans-Feminist Movement, J Rouge
2009 Dublin Anarchist Book Fair Talk, Martha Ackelsberg
[1] N.T.: junção dos termos “queer” [associado a “bixa”, “viado”, “sapatão”, em português] e do termo “fóbico”.
[2] N.T.: sigla da Human Rights Campaign [Campanha de Direitos Humanos], uma organização em apoio à comunidade LGBTIA+.
[3] N.T.: em inglês, a palavra “workingmen” significa, literalmente, “homem trabalhador”, pois é a junção de duas palavras: “working” (em referência a trabalho) e “men” (que significa ‘homem’). Ao manter somente a palavra “workers”, não se faz referência especificamente aos homens.